A incrível partida que
reuniu ex-jogadores ucranianos contra nazistas que invadiram a União Soviética
em plena Segunda Guerra.
Primeiro tempo. O Flakelf,
time dos orgulhosos pilotos da Luftwaffe, vencia o Start por 1 a 0 na base do
pontapé e da ajuda do árbitro. Os jogadores ucranianos do Start dominavam a
bola e escapavam como podiam das ferozes divididas e aos poucos foram impondo
seu estilo. Num avanço rápido, Kusmenko driblou o zagueiro alemão em direção à
meia-lua e foi puxado pela camisa por trás. A torcida vaiou a complacência do
árbitro. Kusmenko, ainda em movimento, dominou a bola, saltou sobre outro
zagueiro alemão que vinha num arrebatado carrinho e meteu um chute direto na
gaveta, empatando o jogo.
A torcida ucraniana
enlouqueceu. O grito de gol foi como se tivessem se libertado da opressão. Sim,
era uma partida de futebol entre invasores e conquistados. No dia 9 de agosto
de 1942, ela era importante para os dois lados, em guerra desde 1941.
A partida não foi jogada no
novíssimo Estádio Stalin (ironicamente inaugurado em 22 de junho de 1941, dia
da invasão) ou no do Dynamo (o tradicional, inaugurado em 1927), mas no pequeno
estádio Zenith, com capacidade para 10 mil torcedores. "Isso era para o
caso de os alemães perderem e não haver desordem na saída", afirma o
escritor inglês James Riordan, autor de Match of Death (Jogo da Morte). "O
estádio estava cercado por soldados armados e cães. Os assentos foram ocupados
por soldados nazistas e mercenários ucranianos. O resto do espaço foi
preenchido por velhos, mulheres e crianças, arrebanhados para testemunhar a
vitória germânica." Kiev, capital da Ucrânia, estava sob o domínio do
exército nazista desde 26 de setembro de 1941. O torneio de futebol fora
suspenso e os jogadores da cidade estavam no front. Com a ocupação, os soldados
foram aprisionados e enviados a campos de concentração nos arredores da cidade.
Parte foi executada. Outros, enviados à Alemanha para trabalhos forçados.
Alguns presos classificados como "inofensivos" foram libertados e
voltaram a Kiev, onde perambulavam como mendigos, sem trabalho, casa ou comida.
Eventualmente reuniam-se na
Padaria N°3, que abastecia toda a cidade, inclusive as tropas nazistas. O
gerente, Iosif Kordik, empregava alguns jogadores desocupados, como Nicolai
Trusevich, ex-goleiro do Dynamo, agora faxineiro da padaria. O time, fundado em
1927, era destaque no campeonato nacional soviético de futebol desde seu
início, em 1936, quando foi vice-campeão, perdendo para o Spartak de Moscou.
Kordik, torcedor fanático do Dynamo, teve a ideia de montar um time de futebol amador
visando manter os homens motivados. Pediu a Trusevich para encontrar seus
velhos companheiros de bola, inclusive os da equipe rival, o Lokomotiv. O
faxineiro passou a primavera de 1942 atrás deles e encontrou Makar Goncharenko,
do Dynamo. O jornalista e escritor escocês Andy Dougan relata em seu livro
Futebol e Guerra as palavras de Goncharenko: "Nicolai me encontrou na Rua
Kreschatick, onde eu morava ilegalmente na casa da minha sogra, e veio com a
ideia de procurar os meninos".
Nas semanas seguintes,
formaram um time que batizaram de FC Start. Eram oito jogadores do Dynamo e
três do Locomotiv, que batiam bola à noite no fundo da padaria. Logo decidiram
encarar um torneio municipal organizado pelos nazistas. Usariam camisas vermelhas,
que Trusevich e Putistin acharam num depósito abandonado. Trusevich dizia que
suas armas seriam as vitórias no gramado, e a camisa vermelha jamais seria
derrotada pelos nazistas. E não foi mesmo. No campeonato, o Start só aplicou
goleadas: 6 a 2 na Guarnição Húngara; 11 a 0 na Guarnição Romena; 9 a 1 nos
Operários da Estrada de Ferro; sempre encantando o público com seu futebol
estiloso. Então veio um convite para enfrentar um time militar alemão, o PGS.
Venceram por 6 a 0.
Os nazistas, humilhados, desafiaram
o Start a jogar contra o poderoso Flakelf (literalmente: "11 à prova de
balas"). Em 6 de agosto o subnutrido time do Start derrotou o bem
alimentado time nazista em seu melhor estilo: 5 a 1. O Start havia vencido
todos os times dos inimigos. Mas a gota d¿água foi ter goleado o Flakelf, o
time de pilotos da Luftwaffe e dos artilheiros (de verdade, eles manejavam
artilharia antiaéreas). Inconformados com a derrota para o "time da
padaria", os nazistas pediram revanche.
Naquela tarde de domingo de agosto,
a população de Kiev só pensava em ver os opressores goleados e humilhados. O
estádio fervilhava. Os nazistas remexiam-se nos assentos esperando pelo início
do tira-teima. O árbitro, um oficial da SS, foi antes do jogo ao vestiário do
Start e disse aos atletas que eles deveriam seguir todas as regras, inclusive
fazer o cumprimento à moda nazista. Antes de começar o jogo, os atletas se
perfilaram, tendo ao fundo bandeiras vermelhas com a suástica. Os alemães, de
calções pretos e camisas brancas, saudaram com o notório Heil, Hitler! Os
ucranianos (de calções brancos e camisas vermelhas) levantaram parcialmente os
braços e bateram as mãos no peito gritando:
"Fizkult-urra-urra-urra!", ou seja: "Viva a Fisicultura" ou
"Hurra ao esporte", uma tradicional saudação soviética.
O árbitro soou o apito e
então só fez vistas grossas às faltas do Flakelf, inclusive sobre o goleiro
Trusevich, que sofria uma pancada a cada defesa. Foram tantas que após levar um
chute na cabeça, ainda meio tonto, não conseguiu evitar que os alemães abrissem
a contagem. No final do primeiro tempo, Goncharenko arrancou soberano, driblou
toda a defesa do Flakelf e estufou as redes: 2 a 1. Nem bem o Flakelf deu a
saída, o Start retomou a bola e num ataque fulminante meteu mais um ¿ 3 a 1. A
situação ficou ruim para os alemães. No intervalo, um colaborador dos nazistas,
Georgi Shvetsov, foi ao vestiário do Start e pediu para entregarem o jogo. Um
oficial da SS que o acompanhava sugeriu que deveriam perder... ou haveria
consequências.
Os times foram para o
segundo tempo. O árbitro deixava a pancadaria correr solta. O Flakelf
pressionou e marcou dois gols, deixando os nazistas contentes com os 3 a 3. Mas
o Start tinha futebol para liquidar a fatura. E em dois lances fez dois gols: 5
a 3. Pouco antes de acabar a partida, o zagueiro Klimenko driblou toda a defesa
alemã e o goleiro, mas em vez de cruzar a linha do gol, virou-se e chutou a
bola de volta para o meio-campo. O árbitro apitou o final de jogo antes dos 45
minutos.
Muita coisa se escreveu
sobre o "jogo da morte". O escritor uruguaio Eduardo Galeano registra
em seu livro Futebol ao Sol e à Sombra: "Durante a ocupação alemã, eles [o
Dynamo de Kiev] cometeram o ato insano de derrotar o esquadrão de Hitler no
estádio local. Depois de terem sido avisados de que `se ganharem vão morrer¿,
estavam conformados de perder, tremendo de medo e fome, mas não puderam
resistir à tentação da dignidade. Quando o jogo acabou todos os onze foram
mortos com suas camisas à beira de um precipício".
Na verdade, isso não
aconteceu, pois consta que o Start jogou no dia 16 contra o Rukh e aplicou uma
goleada de 8 a 0. Essa sim foi a última partida. No dia 18, a Gestapo invadiu a
Padaria N°3 e prendeu 9 jogadores, alegando suspeita de trabalharem para a NKVD
¿ a polícia secreta comunista à qual os atletas do Dynamo eram obrigados a se
filiar durante o período da União Soviética para poder jogar futebol. Depois
prenderam os jogadores Nicolai Korotkikh e Oleksiy Klimenko. O primeiro morreu
torturado e o segundo, baleado ao tentar fugir da Gestapo. O resto do time foi
enviado ao campo de Siretz - onde os prisioneiros trabalhavam como escravos até
a morte.
Em fevereiro de 1943, em
represália às dissidências ucranianas, os nazistas executaram um terço dos
prisioneiros de Siretz, entre eles Ivan Kuzmenko e Nicolai Trusevich. Conta-se
que, ao ser alvejado, Trusevich caiu ao chão, mas com sua agilidade de atleta
voltou a ficar de pé e gritou: "O esporte vermelho jamais morrerá!" E
então caiu sem vida, vestido com sua camisa vermelha e preta de goleiro. Essa
dramática história foi contada por Fedir Tyutchev, Mikhail Sviridelsky e Makar
Goncharenko, que fugiram de Siretz em 6 de novembro de 1943 e foram acolhidos
pelo Exército Vermelho, que a essa altura da guerra entrava em Kiev.
Em 1959, Severov e Naum
Khalemsky lançaram um livro com o mesmo título. Mark Pougatch, apresentador de
esportes da emissora BBC, da Grã-Bretanha, citou um documentário grego sobre o
evento no qual um ex-jogador do Flakelf chamado Willie Endelbardt afirmava que
antes do jogo um oficial alemão entrou no vestiário e disse aos jogadores:
"Este é um jogo especial e vocês têm que vencer para provar a
superioridade da raça ariana". Willie afirmou que os alemães respeitaram
os adversários.
Em 1992, Makar Goncharenko
revelou, pouco antes de morrer, que o árbitro alemão foi ao vestiário antes do
jogo, mas não fez qualquer ameaça, apenas pediu para seguir as regras e saudar
o adversário à moda nazista.
Em 2005, numa inquirição que
durou cerca de 40 anos, a Comissão de Investigação de Hamburgo não encontrou
ligação entre a vitória no jogo e a morte dos ucranianos. Para endossar o que
de fato aconteceu, há uma foto tirada antes da partida em que alemães e
ucranianos estão juntos e sorrindo. Mas não há registros do que ocorreu durante
e depois do jogo da morte.
Texto
Fernando Moretti
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