Mesmo presa, a Donzela foi
uma ameaça para seus adversários. Eles arquitetaram um julgamento falacioso
para transformar a “enviada de Deus” em discípula de Satã.
"Joana d’Arc, uma das
pessoas de índole mais simples que a história produziu, está em processo
eternamente”, escreve o acadêmico Jean Guitton. O inquérito contra a Donzela –
para empregarmos um termo jurídico – começou com a sua estada, que se prolongaria
por várias semanas, em Poitiers, na França, em março de 1429, no curso das
quais os doutos da Igreja e também os juristas do Estado vigiavam
permanentemente seu comportamento, inquirindo-a com perguntas insidiosas tanto
para tentar atingir sua enorme credibilidade quanto para delinear sua
personalidade.
O primeiro veredicto a que
chegaram é que não havia nada de inquietante, nem de suspeito a respeito
daquela pastora pouco culta que, dizendo-se guiada por vozes, se apresentara
diante do delfim afirmando que viera para conduzir os franceses à vitória. Sua
boa-fé parecia verdadeira; seu projeto era santo. Talvez a Providência, enfim,
tivesse decidido intervir a favor de Carlos VII da França, um rei considerado
muito cristão, e de seus súditos. Certamente, o instrumento dessa intervenção
poderia surpreender, mas era teologicamente admissível. Era fato – assim
mostrava a Bíblia – que o céu se interessava pelo destino dos povos e das
nações. Logo, não apoiar a iniciativa da “enviada de Deus” que desejava provar
a origem sobrenatural de sua missão por meio de um “sinal” perante a cidade de
Orléans, sitiada havia seis meses pelos ingleses, seria dar provas de
ingratidão. Parecia absolutamente inevitável, pode-se dizer necessário,
sobretudo num momento de angústia, confiar nela.
E o milagre acontece! As
palavras da pequena Joana são confirmadas. O cerco de Orléans é desfeito (8 de
maio de 1429) e, logo a seguir, três outras cidades do vale do Loire são
reconquistadas. Quando os ingleses são derrotados em Patay (18 de junho), a
reconquista do reino se acelera – e Carlos VII, conduzido pela Donzela de
Orléans (a partir dessa data, ela será conhecida por esse nome), é sagrado rei,
na catedral de Reims, no dia 17 de julho, em clima de entusiasmo geral. Mesmo
depois de tudo isso, as interrogações continuam: que força se esconde por trás
dessas vitórias espetaculares?
A propaganda da Coroa
francesa reforçou a dimensão religiosa da personalidade de Joana. A Donzela foi
apresentada como uma profetisa que já teria sido anunciada por outros profetas.
A resposta veio no mesmo campo da religiosidade, o que começou a traçar o
destino da pastora guerreira. Um tratado em latim, redigido por um acadêmico
parisiense, sem dúvida especialista em direito canônico, que foi escrito nas últimas
semanas de 1429, nos dá o testemunho disso. O objetivo foi responder à obra de
Jean Gerson Sobre uma donzela (De quadam puella, 14 de maio de 1429), onde são
enumeradas as razões para crer nos propósitos santos de Joana.
No tratado anônimo, as
críticas endereçadas a Joana são as seguintes: vestia-se como homem, tinha
atitudes belicistas, falsas profecias, idolatria a seu favor e recurso a
sortilégios. A cereja do bolo foi apontar como falta de respeito às festas
religiosas a tentativa frustrada de Joana de entrar em Paris, dominada por
borguinhões e ingleses, em 8 de setembro de 1429, festa da Natividade da
Virgem. Tantos motivos levaram esse homem da Igreja a pedir a intervenção da
universidade e do bispo de Paris – e do Tribunal da Inquisição também, habilitado
a se pronunciar em todos os casos de heresia.
EM BUSCA DE CONFISSÕES Não
surpreende que a universidade, cuja autoridade em matéria de teologia
permanecia incontestada, e a Inquisição, agindo com ela, tenham pedido o
julgamento de Joana, logo após sua prisão pelos borguinhões em Compiègne, em 23
de maio de 1430. É inútil conjecturar que esses dois órgãos tenham sido
forçados pelo duque de Bedford, regente inglês na França, a tomar essa posição.
A solicitação de investigação foi iniciativa dessas instituições.
Após meses de subterfúgios e
negociações, a Donzela foi entregue, enfim, ao rei da França e da Inglaterra.
Ela passou a ser sua prisioneira de guerra. Não seria possível julgá-la,
condená-la à morte como rebelde, passível de crime de lesa-majestade?
Claro que sim. Mas o impacto
de um processo semelhante seria, sem dúvida, negativo aos olhos de uma opinião
pública sempre hesitante entre os borguinhões e Carlos VII. Decidiu-se então
submeter o pedido das autoridades eclesiásticas para que fosse feito um
processo “em matéria de fé”. Por sorte, o lugar preciso onde Joana foi presa se
situava na diocese de Beauvais, cujo bispo, Pierre Cauchon, era também um dos
pilares da dupla monarquia. Esse prelado, dublê de político, seria encarregado
desse processo da Igreja, que ocorreria, por mais precaução, no castelo real de
Rouen, que era ocupado muitas vezes pelo jovem rei inglês Henrique VI.
Pierre Cauchon não era um
especialista nesse tipo de processo. Ademais, ele sabia quanto o assunto era
polêmico. O bispo tomaria muitas precauções para cumprir a missão que lhe fora
designada (desqualificar a acusada, neutralizá-la e mesmo eliminá-la) e fazer
do processo uma obra comum dos bispos, abades mitrados, teólogos e canonistas,
guarnecidos de títulos e diplomas. Era necessário que a condenação fosse, de
certa forma, inatacável no campo do direito, já que, por certo, as acusações de
falta de isenção se levantariam.
Ao lado de Cauchon estavam
um inquisidor (Jean Le Maître), um promotor eclesiástico (Jean d’Estivet,
chamado o Beneditino) e três escrivães públicos. Certamente, Joana, sozinha,
contra esse poderoso tribunal, estava longe de ter chances reais de absolvição
nesse processo. A isso se somavam o rigoroso encarceramento, a falta de um
advogado de defesa, testemunhas de acusação não identifi cadas, nenhuma
investigação de moralidade, e, sobretudo, privação de comunhão, o que para ela
representava um intenso sofrimento espiritual. Mas essa era a prática da
Inquisição, que se baseava na presunção de culpabilidade. Estar sob veementes
acusações de ser herege (como era o seu caso) já era ser considerado culpado
por heresia. Uma vez o tribunal instalado no castelo do rei, o processo começou
(21 de fevereiro de 1431).
A reviravolta aconteceu
quando Cauchon e seus assessores compreenderam que Joana se recusaria
resolutamente a submeter as suas vozes e as suas revelações à apreciação da
hierarquia da Igreja, sobretudo às pessoas hostis e parciais que estavam diante
dela. À sua maneira, ela os declarava incompetentes. Parecia aceitar que seu
caso fosse levado ao papa, em Roma, ou até mesmo ao concílio geral que deveria
se reunir, em breve, em Basileia. Reivindicada de maneira explícita, essa
insubmissão a fez, consequentemente, ser expulsa da Igreja. Ela não passava de
um membro podre do corpo místico de Cristo; para a salvação do povo cristão,
era necessário arrancá-lo. A sua personalidade polêmica, obstinada, ajudou
aqueles inquisidores a transformá-la em herege.
Essa era a situação em 24 de
maio de 1431, dia em que, em praça pública, perto da abadia de Saint-Ouen,
extenuada, ela resolveu, enfim, após o desenrolar de uma cena patética, negar
as suas vozes e se submeter à Igreja. Em seguida a essa aparente abjuração, ela
escapou in extremis da fogueira e foi reconduzida à sua prisão para fazer
penitência com pão e água.
VIGIADA POR SOLDADOS
INGLESES O caso, na esfera civil, poderia ter terminado por aí. Mas, talvez,
decepcionada por ainda se encontrar presa (a possibilidade de uma prisão sob o
comando da Igreja, menos severa, onde ela seria vigiada por mulheres em vez de
por soldados ingleses que nutriam ódio por ela, a animara a abjurar), ela
afirmou que seguia ouvindo vozes e, como sinal da sua mudança, tornou a vestir
roupas de homem, misteriosamente deixadas à sua disposição pelos carcereiros
ingleses.
Esse acontecimento gerou um
segundo processo, mais sumário: cometendo seu erro mais uma vez, ela foi
classificada como relapsa. A partir daí, foi entregue ao braço secular, isto é,
ao poder real, que a condenou à fogueira na praça Vieux-Marché, no dia 30 de
maio de 1431. O poderoso cardeal Henri Beaufort, bispo de Winchester, tio-avô
do rei Henrique, assistiu ao seu fim. Nos bastidores, ele acompanhou de muito
perto o desenrolar do processo. Certamente, a dupla monarquia jamais considerou
cabível a declaração de inocência da prisioneira, seguida por eventual
liberação. Ela causara muitos danos aos ingleses, e o seu potencial de
liderança subsistia.
Podia-se, por outro lado,
questionar a posição de Cauchon: ele era apenas um executor desprovido de
autonomia ou, como homem da Igreja, acreditava ser possível que a culpada fosse
condenada a uma simples pena de prisão, com a condição de que reconhecesse ter
deliberadamente enganado o povo, por ter sido enganada pelo diabo?
De início, o prelado não
suspeitou da importância que ela atribuiu às vozes, ou seja, ele ignorava a
natureza, senão a sua existência, e não entendia, portanto, a tranquila
determinação de defender seu rei e assumir a sua missão. Ela podia ter negado
imediatamente. A resistência surpreendeu. Após a abjuração, Cauchon se
perguntou se ela continuaria a se arrepender, se esse ato não fora causado
simplesmente pelo medo da fogueira. Com o benefício da dúvida, pode-se
conjecturar que Cauchon chegou a ficar satisfeito com a abjuração de 24 de
maio.
UM PERIGO PARA A FÉ E O
PODER A questão para a dupla monarquia não era apenas condená-la à morte. Era
também necessário convencer a opinião pública, na França e fora da França, da
legitimidade dessa condenação. Cartas foram redigidas, algumas em latim, outras
em francês, especialmente para o rei do Sacro Império Romano-Germânico,
Sigismundo de Luxemburgo, o duque da Borgonha, o papa e os cardeais. O que
essas cartas diziam?
Aquela mulher, devido à
grande popularidade, representava um perigo para a fé, os poderes e a
sociedade; ela era cruel e presunçosa, consentindo que seus seguidores a
idolatrassem, por orgulho; estimava-se acima das autoridades eclesiásticas,
mesmo as mais altas, dirigindo-se diretamente a Deus, de quem se julgava
enviada.
Em um momento, diziam as
missivas, arrependeu-se de seus erros, e a Igreja, na sua misericórdia,
perdoou-a. Infelizmente, essa abjuração era apenas um logro, do qual ela voltou
atrás. Então, a Igreja pronunciou sua sentença definitiva. É verdade que, antes
de morrer, na última reviravolta do processo, ela confessou que as vozes a
enganaram e se entregou à Igreja, a única capaz de julgar a natureza dessas
vozes.
Nada mostra que essa
propaganda tenha atingido o seu objetivo. O que pensava Carlos VII, que
permaneceu sem reação durante todo o processo? Talvez, a seus olhos, Joana não
pudesse mais ser controlada e se tornasse mais nociva do que útil, no caso de
uma eventual aproximação com a Borgonha; talvez, seus conselheiros
eclesiásticos tenham-no persuadido de que os fracassos sucessivos que ela
sofreu desde o assalto frustrado em Paris, que ela, aliás, tinha previsto,
mostravam que Deus não estava mais a seu lado.
Conhece-se o desenrolar do
processo graças à redação, em latim, feita algumas semanas ou meses após sua
conclusão, dos atos (um original mais cinco cópias autênticas, das quais três
chegaram até nós). A autoria dessa redação é de Thomas de Courcelles, um jovem
universitário com um futuro promissor, ajudado pelo consciencioso Guillaume
Manchon, um dos três escrivães. Com esse documento em vários exemplares (um
caso único), a dupla monarquia entendia dispor de um bom dossiê, em caso de
contestação da parte de Carlos VII junto ao papa ou ao concílio de Basileia.
UM PROCESSO POLÍTICO
Processo religioso ou político conduzido por juízes ligados a um partido?
Tomadas uma por uma, as acusações contra o tribunal podem parecer
fundamentadas. A orgulhosa insubmissão de Joana à Igreja oficial, isto é, aos
supostos detentores terrenos do poder espiritual, sempre vai pesar contra seus
acusadores. A Igreja não se pronunciou a respeito das visões nascidas do
cérebro dessa jovem inteligente, porém iletrada, que, talvez, as inventasse. É
necessário, contudo, concluir que se tratou de um processo político: se Joana
tivesse falado e agido a favor dos ingleses, não seria possível um processo em
matéria de fé. Eles a deixariam agir, ainda que a vigiassem à distância.
Inversamente, teria sido melhor para ela não ter caído nas mãos de um capitão
de Carlos VII, porque a Inquisição também existia no “reino de Bourges”,
baseando-se nos mesmos princípios dos da “França inglesa”.
Autor:
Philippe Contamine, historiador, é especialista em Idade Média.
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