Balduíno IV na batalha de Montgisard, Charles Philippe Larivière (1798-1876). Imagem: Arquivo CHH.
Esse jovem monarca, quase desconhecido na História, foi entretanto dos
mais heróicos cruzados e protótipo de soberano virtuoso, comparável a São Luís
IX.
Balduíno, filho de Amaury I de Jerusalém e de Inês de Courtenay, nasceu
no ano de 1160 na Cidade Santa, Jerusalém. Apesar de o casamento de Amaury ter
sido anulado por questão de parentesco, os filhos dele nascidos, isto é, Amauri
e Sibila, foram considerados legítimos herdeiros da Coroa.
Um dia em que Balduíno brincava de guerra com outros meninos de sua
idade, seu preceptor notou que, enquanto os demais gritavam quando eram
atingidos, ele parecia nada sentir.
Perguntando-lhe a razão disso, o menino respondeu que os outros não o
feriam, e por isso não manifestava dor e não gritava. Mas, reparando o
preceptor em suas mãos e braços, percebeu que estavam adormecidos.
O rei foi informado e mandou vir os melhores médicos, que ministraram
emplastros, ungüentos e outras medicinas à criança, sem alcançar entretanto
resultado algum. Era o começo de uma doença que iria progredir à medida que
Balduíno fosse crescendo.
Em suma, esse menino tão belo, tão ajuizado e já tão sábio fora atingido
por um mal terrível, que se revelou logo: a lepra, que lhe valerá o trágico
cognome de o Leproso.
Dificuldades: doença, divisão
interna e Islã
Com
a morte prematura de Amaury, Balduíno foi aclamado rei aos 13 anos. Nessa época
ele era um adolescente encantador, o mais cultivado dos príncipes de sua
família, “dotado de uma grande vivacidade de espírito, se bem que gaguejando
ligeiramente como seu pai, e de uma excelente memória”, escreve seu historiador
e preceptor, Guilherme de Tiro(1).
“O reino desse infeliz jovem, de 1174 a 1185, não foi
senão uma longa agonia. Mas uma agonia a cavalo, face ao inimigo, toda
enrijecida no sentimento da dignidade real, do dever cristão e das
responsabilidades da coroa nessas horas trágicas em que o drama do rei
correspondia ao drama do reino”(2).
Com efeito, o clima deste era de insubordinação, muitos procurando
seguir apenas seus interesses pessoais. Foi essa funesta divisão entre os
cristãos que levou, pouco depois, à perda de todos os reinos que haviam sido
conquistados pelos cruzados na Palestina.
Já aos 15 anos e leproso, derrota
islamitas
De 26 de junho a 29 de julho do ano de 1176, o sultão Saladino assediou
a cidade de Alepo. Balduíno IV, que na ocasião contava apenas 15 anos e a lepra
não havia ainda minado suas energias, partiu em socorro daquele bastião
cristão, coadjuvado pelo Conde de Trípoli, Raimundo III.
Juntos, conquistaram grande
vitória sobre os muçulmanos.
“Assim, mesmo sob o reino do pobre adolescente leproso, mesmo em
presença da unidade muçulmana quase inteiramente reconstituída, a dinastia
franca da Síria manteve os inimigos em cheque. Apesar de sua enfermidade — logo
ele não viajará mais senão em liteira —, Balduíno IV, precocemente amadurecido
pela dor, demonstrou uma força de alma diante da qual a História deve se
inclinar com respeito”(3).
Progredindo a lepra, Balduíno viu a necessidade de assegurar sua
sucessão. Para isso só havia suas duas irmãs, Sibila e Isabel. Esta última era
filha do segundo casamento de seu pai.
Sobre
Sibila, a mais velha, repousava em particular o futuro da dinastia, pois,
segundo o costume do país, seu esposo seria rei de Jerusalém.
A escolha do esposo recaiu sobre o príncipe piemontês Guilherme
Longa-Espada, um dos mais nobres da Cristandade, primo do Imperador Frederico
Barbarroxa e do Rei da França, Luís VII.
Tal casamento, que se realizou em 1177, foi efêmero, pois Guilherme
faleceu três meses depois, deixando sua jovem esposa à espera de um herdeiro, o
futuro Balduíno V. Esse nascimento póstumo, trazendo como conseqüência para o
reino uma nova regência, só poderia enfraquecê-lo ainda mais.
Enquanto isso, Balduíno IV apressou-se em renovar a aliança com o
Imperador bizantino Manuel Comeno para, juntos, invadirem o Egito.
As circunstâncias pareciam favoráveis, em virtude das hostilidades que
Saladino estava sofrendo na Síria naquela ocasião. Entretanto, como a lepra
impedia Balduíno de comandar a expedição, ele ofereceu o comando ao Conde
Felipe de Alsácia, que se encontrava em Jerusalém com seus homens.
Mas este, para surpresa geral, não aceitou o convite. Julga-se que
Felipe queria suceder ao rei leproso, sendo seu primo. Sua recusa fez fracassar
a aliança e comprometer ainda mais os interesses cristãos na Terra Santa.
Fé e heroísmo: causas de vitória
inimaginável
Em 1177 Balduíno, cedendo às instâncias do Conde de Flandres,
emprestou-lhe grande parte de suas tropas para que este tentasse uma expedição
contra Hamas. Sabendo que Jerusalém estava assim desguarnecida, Saladino reuniu
todas suas tropas para invadir o reino cristão.
A situação neste era trágica. Balduíno não dispunha senão de 500
cavaleiros. Por outro lado, o Condestável Onfroi de Toron, que o podia ajudar
na direção da defesa, caiu gravemente doente.
Nessas circunstâncias quase desesperadas, o jovem rei leproso foi
heróico. À aproximação do inimigo, reunindo tudo que podia encontrar de
combatentes, saiu com a relíquia da Santa Cruz e chegou a Ascalon.
Mandou
uma ordem a Jerusalém e a todo o reino, convocando todos os homens capazes de
portar armas a reunirem-se a ele. Mas, quando o reforço se aproximava da Cidade
Santa, foi capturado por Saladino.
Julgando-se já dono da situação, o sultão ismaelita permitiu que suas
tropas se dispersassem, pilhando, matando, fazendo prisioneiros por toda parte.
Ébrio pelo sucesso, Saladino mostrou-se de uma crueldade inaudita.
Mandou reunir os prisioneiros e lhes esmagou a cabeça.
Certo de que os francos estavam reduzidos à impotência, o sultão
protegeu-se atrás das muralhas de Ascalon, quando viu aparecer subitamente o
rei leproso e seu pequeno exército. Foi no dia 25 de novembro de 1177.
Tinham eles anteriormente perseguido os muçulmanos esparsos,
derrotando-os.
Após a batalha, ação de graças no
Santo Sepulcro
Os cruzados caíram como um raio sobre o exército de Saladino.
“Ágeis como lobos, ladrando como cães, atacaram em massa, ardentes como
a chama” (4), com a relíquia da Santa Cruz à frente, portada pelo bispo de
Belém.
Os cristãos tiveram a impressão de que a Cruz crescia até tocar o céu. O
cronista siríaco Miguel, Patriarca da Igreja jacobita, contemporâneo dos
acontecimentos, assim descreveu a milagrosa batalha de Montgisard:
“O Senhor teve piedade dos cristãos. Todo mundo tinha perdido a
esperança, porque o mal da lepra começava a aparecer no jovem rei Balduíno, que
enfraquecia, e desde então cada um tremia.”
“Mas o Deus que fazia aparecer sua força nos fracos inspirou o rei
doente. O resto de suas tropas reuniu-se em torno dele.”
“Ele desceu de sua montaria,
prosternou-se com a face contra a terra diante da Cruz e rezou com lágrimas. À
vista disto, o coração de todos os soldados se enterneceu.”
“Eles estenderam todos a mão sobre a verdadeira Cruz e juraram jamais
fugir; e, em caso de derrota, olhar como traidor e apóstata quem fugisse em vez
de morrer.
“Montaram de novo nos cavalos e avançaram contra os turcos, que se
regozijavam, pensando já os ter derrotado.”
“Vendo os turcos, de quem a força parecia um mar, os francos deram-se
mutuamente a paz e pediram uns aos outros um mútuo perdão.” Em seguida
engajaram a batalha.
“No mesmo instante o Senhor fez cair violenta tempestade, que levantava
a poeira do lado dos francos e a lançava no rosto dos turcos.”
“Então os francos, compreendendo que o Senhor havia aceito seu
arrependimento, tomaram coragem, enquanto os turcos deram meia-volta e fugiram.
Os francos os perseguiram, matando e massacrando durante o dia todo”(5).
Somente a fidelidade dos mamelucos salvou Saladino de morte certa.
“Jamais
vitória cristã mais bela tinha sido infligida ao Levante, e todo o mérito
voltava-se ao heroísmo do rei, cuja juventude [tinha então 17 anos], triunfando
por um instante do mal que corroía o corpo, igualou-se em maturidade a um
Godofredo de Bouillon ou a um Tancredo”(6).
Coragem e resignação ante a
devastação da lepra
Balduíno continuou a infligir derrotas aos islamitas, embora não pudesse
vencer a luta que se travava em seu próprio corpo entre a lepra e as partes
sãs. Aquela o deformava de tal maneira, que assim é descrito por um
historiador, em 1183:
“Do belo menino louro, que nove anos antes havia recebido com fausto a
coroa, não restava senão um inválido, um ser decaído, repugnante.”
O belo rosto não era senão placas de carne marrom, fechando três quartas
partes das órbitas, das quais todo olhar fugira para sempre, cortando-o do
mundo, mergulhando-o numa noite eterna.
Suas mãos elegantes estavam reduzidas ao estado de cotos. Seus dedos
amortecidos haviam caído uns após outros, putrefatos. Seus pés haviam tido a
mesma sorte e estavam como encolhidos pelo mais cruel dos torcionários
chineses.
Coberto de placas e bolhas, o resto do corpo não estava diferente para
se ver. [...]
Ao preço de esforços por vezes espantosos, ele continuava a assumir seu
papel de rei.
Jamais
havia faltado a um combate, jamais fugido a uma responsabilidade”(7).
Balduíno
IV, o rei heróico e virtuoso, semelhante ao admirável monarca francês São Luís
IX, e cuja vida não foi senão uma lenta agonia, entregou a Deus sua alma pura
no mês de março de 1185, aos 24 anos de idade.
“Tendo
mantido até seu último suspiro a autoridade monárquica e a integridade do
reino, soube também morrer como rei”.(8).
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Notas:
(1) René Grousset, Histoire des Croisades et du
Royaume Franc de Jérusalem, Paris, Librairie Plon, Les Petits-Fils de Plon et
Nourrit, 1935, p. 610.
(2) Id., ib., pp. 610-611.
(3) Id. ib., pp. 632-633.
(4) Id. ib., p. 658.
(5) Michel le Syrien, III, p. 375. apud René Grousset,
op. cit., p. 657.
(6) René Grousset, op. cit., p. 663.
(7) Dominique Paladilhe, Le Roi Lépreux, Perrin,
Paris, 1984, apud Gregório Lopes, Catolicismo, abril/1992.
(8) René Grousset, op. cit., p. 744.
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