1. Os primeiros dez milênios
Figura 1 – Artefatos líticos (manifestações da Tradição Umbu)Legenda: a, b: pedra gravada (ambas as faces);c: cópia dos petroglifos do Morro do Sobrado, Montenegro, RS;d – o: pontas de projétil; p: furador; q: raspadeira;r, s: raspadores pedunculados; (In: MENTZ RIBEIRO, 1999)
Pedro Ignácio Schmitz*
O Rio Grande do Sul foi povoado muito antes do que a maior parte das pessoas imagina. O ambiente seco e frio da última glaciação, com ventos gelados varrendo paisagens de pouca vegetação, foi o cenário dos primeiros humanos que, uns 10.000 anos a.C., acamparam à beira do rio Uruguai e nos abrigos rochosos do vale do Caí. Este povoamento não é um fato isolado. A América do Sul inteira recebe, neste tempo, o seu povoamento definitivo. São populações que, saindo da Ásia, atravessaram o estreito de Behring, peregrinaram pela América do Norte e Central e, depois de muitas gerações, chegaram aqui.
Se antes desse momento temos humanos em alguns pontos do subcontinente, como no Nordeste do Brasil, ou no Centro-Sul do Chile, as pesquisas deverão confirmar. Mais de 600 gerações humanas sucederam-se de então para cá, no Estado. Isto é bastante frente às 13 gerações contadas desde a ocupação portuguesa do território, mas é pouco em comparação das 90.000 gerações humanas do Velho Mundo. Neste primeiro capítulo esboçaremos a história das populações mais antigas, que viviam de caça, pesca e coleta e não conheciam cultivos. As populações dos dez primeiros milênios tinham pouco domínio sobre a natureza porque suas culturas e sua tecnologia eram, ainda, pouco desenvolvidas. Viviam dentro da natureza e aproveitavam o que ela brindava graciosamente, interferindo muito pouco em seu sistema. Por isso estão muito dependentes da distribuição desses recursos e sujeitos às mudanças que se processaram nos últimos 10.000 a 12.000 anos.
Olhando o ambiente de nossos dias podemos dar-nos conta, mais facilmente, dessas transformações. Hoje, o clima é temperado úmido. As chuvas estão distribuídas durante
todo o ano, com certo predomínio nas estações do outono-inverno, as precipitações são mais abundantes nas porções de terreno de relevo acentuado, onde podem alcançar 2.000 mm anuais, são menos abundantes nas áreas menos acidentadas, onde podem não passar de 1.250 mm. Em termos gerais, e sem uma estação realmente seca, esta é ainda muita chuva e permite o desenvolvimento de uma densa vegetação de crescimento ininterrupto. As temperaturas médias são inferiores a 22° C; as médias mínimas baixam até 10° C, no planalto; a amplitude térmica anual e diária é alta. A combinação de clima, solo, relevo e história produziram uma distribuição típica da vegetação: campos desenvolvem-se nos terrenos ondulados do sul, oeste e noroeste; florestas mistas com pinheiros ocupam a maior parte dos terrenos altos do norte e nordeste; florestas subtropicais defolhas predominantemente caducas ocupam a borda do planalto eacompanham o rio Uruguai como a maior parte de seus afluentes; ao longo dolitoral ainda constatamos uma vegetação típica. Cada um desses ambientes oferece ao homem que vive de caça, pesca e coleta, recursos diferentes, de origem vegetal, animal e mineral. Oslocais que reúnem maior quantidade e variedade desses recursos eram maisúteis e aí se encontram mais concentrados e mais duradouros os sítios arqueológicos. Locais de recursos uniformes, mesmo se abundantes, e locais de poucos recursos costumam ter poucos sítios; quando existem, costumam ser passageiros.
A longo prazo cada um dos grandes ambientes imprimiu seu caráter às culturas que dentro dele se formaram. Quando os primeiros povoadores chegaram, o ambiente seria bastante diferente do atual. A temperatura média seria alguns graus mais baixa; a precipitação inferior. Os rios teriam pouca água e a paisagem teria uma fisionomia de forte aridez. A floresta subtropical de folhas predominantemente caducas, dependente de calor, só ocuparia pequenas franjas ao longo do rio Uruguai e na encosta do planalto; a floresta de pinheiros, adaptada ao frio, seria mais compacta e desceria bastante na borda do planalto; vegetações herbáceas e arbustivas, de tipo estepe e savana, dominariam as áreas baixas que seriam bastante maiores porque a plataforma continental estaria exposta em grandes extensões por causa do baixo nível das águas do mar.
Neste ambiente, além dos animais hoje existentes, viviam outros
, de estatura e peso muito maiores, que estavam adaptados ao clima frio e àspaisagens abertas de ervas altas, como as preguiças terrestres, os tatus imensos, os hipopótamos, os elefantes, os camélidos e também os cavalos, que são originários da América, para citar apenas alguns. Ao redor de 9.000 a.C. a glaciação mundial terminava e a temperatura ia-se elevando, mas não na mesma proporção, levando a um longo período ainda mais seco, que deveria produzir uma crise na vegetação, acompanhada da extinção dos animais agigantados.
Nichos conhecidos como importantes para o homem, que já vivia nesse espaço, eram as confluências dos arroios no rio Uruguai, onde se juntaria a savana aberta com a estreita mata ciliar e os animais encontrariam a água que escassearia nos terrenos abertos. Também eram importantes pequenos abrigos rochosos na borda baixa do planalto, limite entre a savana e a mata da encosta. Nesses dois nichos estão localizados todos os sítios antigosconhecidos no Estado. Ao redor de 6.000 anos a.C. a umidade começou a aumentar junto com a temperatura, chegando ambas a níveis máximos entre 4.000 e 2.000 a.C., quando deveriam ter sido bastante maiores que hoje. Os rios aumentaram consideravelmente seu volume de águas, o mar, que vinha subindo desde o final da glaciação, subiu alguns metros acima do nível atual, a floresta subtropical de folhas predominantemente caducas invadiu os campos e os pinheirais e tendeu a ocupar o espaço de agora. Nichos favoráveis para o homem seriam os numerosos abrigos rochosos do nordeste do Estado, onde teriam refúgio contra as chuvas e a disponibilidade dos bens nascidos nos campos, na mata e no pinheiral; pequenos vales encaixados na borda do planalto poderiam oferecer condições semelhantes (tradição Umbu). Nas altas matas que se adensam ao longo das margens mesmas do Uruguai, recursos de outra natureza deveriam tornar-se disponíveis porque aí grupos humanos aparecem e se multiplicam (tradição Humaitá). Junto das lagoas litorâneas, onde os moluscos se reproduzem nas águas aquecidas e os peixes marinhos vêm crescer e se multiplicar, cria-se outro nicho muito rico que junta os recursos marinhos, lacustres e florestais da encosta (tradição de coletores e pescadores litorâneos). Durante os dois mil anos seguintes a temperatura e a precipitação teriam um descenso que as deixaria abaixo das médias atuais, mas esta mudança não deveria ser trágica para o mundo animal e humano, embora apareça como um marco de transição para as culturas humanas.
Ao menos um novo nicho aparece com a descida da água das lagoas e dos banhados das cabeceiras de certos rios no centro sul do Estado, criando imensas áreas alagadiças, onde animais terrestres, voláteis e aquáticos estariam acessíveisem grande quantidade; também abundante material para construir cabanas para se abrigar do frio e da chuva. Esse novo ambiente vai oferecer ricas alternativas para caçadores da tradição Umbu. Finalmente, com o começo da era cristã, a temperatura e a precipitação se aproximariam das que conhecemos hoje. Esta última modificação marca a introdução dos cultivos e da cerâmica no Estado, levando a uma vida mais sedentária e a um visível aumento populacional. A nova tecnologia e o novo modo de vida tinham surgido anteriormente em outras áreas do continente (como o México, o Peru e a Amazônia) e são introduzidos no estado de formas diferentes: nas áreas de mato se estabelece um grupo de cultivadores escapados da Amazônia (tradição cerâmica Tupiguarani); nos pinheirais do planalto surge uma população ainda fortemente caçadora e coletora, mas que também planta e inova do ponto de vista do assentamento, construindo casas subterrâneas (tradição cerâmica Taquara); nos campos, as populações tornam-se mais estáveis e no fim provavelmente usam algumas plantas cultivadas (tradição cerâmica Vieira).
Para a evolução climática pode-se ver Ab’Saber (1977).
Você quer saber mais?
Schmitz, Pedro Ignácio, Arqueologia do Rio Grande do Sul, Instituto Anchietano de Pesquisas, 2006.
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