Tokio Mao um Kamikaze sobrevivente
PARA UM KAMIKAZE A MORTE ERA MELHOR QUE A DERROTA
Morador de Niterói, o piloto da Marinha japonesa na Segunda Guerra Mundial Tokio Mao conta como um revide americano o poupou da morte em 1944, durante um ataque no mar das Filipinas. E revela que é discriminado por estar vivo.
No bê-á-bá da guerra, todo mundo aprende que deve estar pronto para matar e morrer. Na Segunda Guerra Mundial, um grupo de japoneses foi além dessa aula e se preparou para se matar pela pátria. Esses homens foram batizados de kamikazes, palavra japonesa que significa “vento divino” e que tem origem em um tufão que, no século 13, teria salvo o Japão da invasão do conquistador mongol Kublai Khan, neto do famoso Gêngis Khan. Tokio Mao fez parte dessa seleta turma de guerreiros suicidas. Mas quis o destino que ele tivesse como missão sobreviver e passar décadas relatando sua história. Aos 84 anos, ele relembra cada detalhe daquele 25 de novembro de 1944, data em que deveria ter morrido em uma ação de contra-ataque na ilha de Luzon, no mar das Filipinas. Menos de um mês antes, num local próximo de onde o avião Zero de Tokio foi abatido, os americanos tinham descoberto o estrago que os kamikazes podiam fazer, quando atacavam em bando. O confronto do golfo de Leyte entrou para a História como o primeiro que utilizou pilotos suicidas em larga escala: 55 aviões japoneses se espatifaram contra a esquadra americana. Em Luzon, Tokio boiou por quatro dias até ser resgatado. Dez anos depois do fim da guerra, ele veio parar no Brasil, de onde nunca mais saiu. Casado com a japonesa Kazuko, pai das brasileiras Tokie e Kazumi, avô de dois meninos, Tokio está tendo uma vida longa e feliz. Este ano, vai levar a família para passear no Japão. Enquanto a viagem não vem, prepara a mudança de endereço de sua academia, Jinen-Kan (“natural”, em japonês). Tokio Mao é mestre de 8º dan, um dos mais altos graus em judô e caratê – sua faixa é vermelha e branca, distinção para poucos. No quimono, ostenta a inscrição Ryo-Bu-Kai, que significa “bom samurai’. Mas já sofreu discriminação entre compatriotas, justamente por ser um kamikaze sobrevivente. Por isso brada: “Eu não tenho culpa de não ter morrido! Foi um acidente!”
Quando o senhor se alistou? Como foi o treinamento para piloto?
O ORGULHO DE SERVIR ALGO MAIOR.
Com 15 anos, me alistei na Academia da Marinha Imperial. Tinha um tio almirante, gostava da Marinha. O serviço militar era obrigatório, então já fui logo. Foi em 1939, a guerra ainda não tinha estourado para nós. Não havia naquela época Marinha, Exército e Aeronáutica, só Marinha e Exército. Aí você podia escolher, lá dentro, fazer aviação da Marinha ou do Exército. Eu queria voar. O treinamento era muito duro: corrida, natação, remo, aprender a mexer em maquinário, judô, kendô [tipo de espada]... Era duro até mesmo para um homem treinado, preparado. No último ano, em 1941, fui fazer preparação especial para piloto.
De que cidade o senhor é? Como era a vida no Japão dos anos 20 e 30?
De Tokushima, capital do estado de Tokushima, perto de Osaka. Naquela época o Japão já tinha muita tecnologia. Eu passava muito frio no inverno. No Japão, tem quatro estações mesmo. Minha família tinha uma fazenda de arroz, com criação de bicho-da-seda, produzia o fio da seda. Mas eu não trabalhava na fazenda. Estudava em período integral, praticava esporte, fazia caixinhas, bonecas, aulas de dança, de música. Meu pai tinha também uma academia de judô, com 3 anos comecei. Minhas filhas, Tokie e Kazumi, também começaram com 3 anos. Com 5 anos, comecei a aprender caratê kempo com os monges budistas de um mosteiro perto da minha casa.
Como o senhor entrou na guerra?
Fui para a guerra no fim de 1943. No início, não se ia direto para o combate, se ficava na retaguarda. Combate, mesmo, só em 1944. Estava bem preparado mentalmente, mesmo aos 19 anos. Sabia que tinha que derrubar! Que se eu não matasse, ia morrer! Derrubei 19 caças americanos com as metralhadoras do meu avião. Eu pilotava um Zero, o melhor caça do mundo. Eu sozinho, pilotando e atirando.
O senhor chegou a ser atingido?
Caí quatro vezes. Em duas delas, a bala do inimigo atingiu meu tanque, a gasolina acabou e o avião caiu. Uma vez, caí na areia da praia. Na outra, em cima de uma árvore, com medo de o avião rolar e despencar. Fui tirando o pára-quedas devagarzinho, puxando 5 ou 7 metros de corda devagarzinho... Amarrei a corda na minha faca e joguei na árvore para pregar no galho. Joguei de novo, e de novo, e de novo, tantas vezes até conseguir pegar o galho. Finalmente peguei e, devagarzinho, saí e desci da árvore. Nas outras duas vezes, caí no mar.
Como foi que o senhor se tornou piloto de um grupo kamikaze?
Eu era do grupo jovem que fundou o kamikaze, em maio de 44. No sul do Pacífico tem bastante ilha. Japonês botou antena em uma delas e americano – “PÁ! PÁ! PÁ! PÁ! PÁ!” – bombardeou. Americano também botou antena, japonês atacou. No início de 44, japonês só perdendo avião. Americano também, mas americano fabricava 20 aviões para cada um japonês. Como faz para acabar a guerra? Papel não dá? Boca não dá? Então nós mesmos vamos acabar com essa guerra, cada um com uma bomba no colo. Cada bomba pesava 250 quilos! Vamos nos jogar, bater em porta-avião americano. O comandante Takijiro Onishi não aceitou a idéia. Depois, com comandante Hisaichi Terauchi, idéia foi aceita. No nosso grupo, tudo começou em 25 de outubro de 1944, na batalha do golfo de Leyte. Meu ataque foi o último, em 25 de novembro. Eram seis kamikazes e 30 pilotos na retaguarda. Eu era tenente, comandei o grupo.
O objetivo era a glória de dar a vida pelo imperador?
Não, nada de glória de imperador. Era acabar com a guerra. E ter uma morte com honra!
Como o senhor passou as horas anteriores ao ataque?
Estava preparado para matar e morrer. Chorar não adianta. De manhã, tomei café. Normal. Tem que comer para ter energia! Antes de ir, todos sempre fazíamos uma oração de despedida.
O senhor disse que não chorou. Não pensou na sua família?
Pensei. Eu tinha dois irmãos. Um não foi militar, não queria saber de guerra. Trabalhava em uma fábrica na Manchúria, a fábrica foi bombardeada pelos russos. Morreu. O outro também trabalhava num lugar bombardeado, mas não morreu.
Como foi o ataque? O senhor deveria jogar seu avião sobre qual alvo?
Saímos da base aérea, subimos uns 7, 8 mil metros. Com a bomba no colo. Nós fomos bem alto, com roupa para o frio e balão de oxigênio. Os caças americanos não nos alcançaram, não se prepararam assim, como nós. Quando chegamos na direção dos alvos, mergulhamos nos navios, sob ataque dos americanos. Quando cheguei a 700 metros do porta-aviões Essex, a asa do meu avião foi atingida e caí no mar. Fui derrubado três, quatro segundos antes de bater no alvo. Caí e desmaiei.
O que aconteceu então?
Acordei e vi que outro do meu grupo pegou bem meu alvo. Os cinco morreram. Eu sobrevivi. Meus colegas kamikazes atingiram os porta-aviões Essex e Intrepid.
Quantos dias o senhor passou no mar? Como sobreviveu?
Fiquei quatro dias. Piloto leva chocolate, bolsa cheia de chocolate. Sobrevivi assim, comendo chocolate. E com água salgada! Vinha a onda, fechava a boca, mas a água entrava assim mesmo! Aí, um submarino do Japão passou, viu meu avião e me viu. Fui resgatado. Estava com quatro costelas quebradas, fratura em dois lugares do braço direito, dedos quebrados, joelho fora do lugar... Como o corpo dói, né? No avião, ainda no mar, coloquei o osso do braço no lugar, os ossos dos dedos no lugar, o joelho no lugar! Tudo eu mesmo! Judoca das antigas aprende tudo isso. Também machuquei a [vértebra] lombar e a cervical. Mas não levei tiro. Caí de 30, 40 metros. Fui para o hospital da Marinha em Taiwan, fiquei quatro meses lá. Perto do hospital tinha uma base, passei a ser instrutor de aviação lá. Mas aí a guerra logo acabou.
Foi difícil viver no Japão depois da Segunda Guerra?
KAMIKAZES SE PREPARANDO PARA O VOO
Depois da guerra, fui estudar medicina oriental, como meu pai – acupuntura. Depois, um colega me chamou em Tóquio: “Tem que aprender química orgânica, fazer penicilina! Aí estudei química na faculdade em Tóquio. Comecei a analisar minerais. Um dia, um japonês que morava nos Estados Unidos e trazia minerais para analisar perguntou se eu queria ir para o Brasil. “Seu Tokio, faça o favor, vamos pesquisar minerais no Brasil. Vamos pagar toda despesa.”
O senhor aceitou logo a proposta?
Sim. Meu pai falou: “Você vai para fora? Tem 30 anos? Vai casar! Sozinho não vai”. Casei um mês antes de vir para cá. Cheguei em novembro de 1955. Era contrato de cinco anos. Mas não acaba em cinco anos. O Brasil é grande demais, né? Mais dois anos. Mais um ano. Aí não dá mais para voltar para o Japão, oito anos aqui! Terra grande! Dos dez que vieram, quatro voltaram. Seis ficaram aqui. Fui para a Amazônia, andei o Brasil todo. A tudo fui! Depois de dez anos, vim morar aqui em Niterói.
Foi quando o senhor abriu sua primeira academia?
A polícia de Niterói pediu aula de defesa pessoal. Trabalhava na companhia e dava aula de manhã e à noite. Comecei para polícia, Marinha e Aeronáutica. Fazia demonstração, quebrava telha, tábua com a mão. Todos queriam saber se eu tinha ferro na mão. Isso em 65. Abri a primeira academia. Em 73, comprei a casa, banco japonês ajudou. Nos anos 80, ensinava 250 pessoas. Dava aula das 7h às 8h30, saía para trabalhar, voltava às 16h30, almoçava 20 minutos, me preparava, dava aula das 17h30 às 21h30. Se alguém se machucava, tratava com acupuntura. Não trabalhei com medicina oriental aqui, só tratava se pedissem, se precisassem. Tive minhas filhas aqui. As duas são faixa preta de 5º dan em judô e caratê, derrubam tudo, até homem.
O que o senhor pensa quando se lembra dos tempos da guerra? Ainda acredita na validade de um ataque suicida?
Acham que qualquer um é kamikaze, que se jogam com bomba em Washington e são kamikazes. Não são! Aí kamikaze é todo mundo maluco? Não! Kamikaze queria acabar com a guerra! Faria tudo de novo! O que lembro? Hiroshima, Nagasaki. Morre gente até hoje por causa de bomba atômica, mais de 66 anos se passaram! Bomba atômica não pode, de jeito nenhum. Não pode matar povo. Guerra é entre militares. Kamikaze sabe disso.
O senhor foi discriminado por não ter morrido?
No Japão e em São Paulo. Em São Paulo, numa associação de japoneses, estava lá e ouvia falarem: “Colegas todos morreram e ele viveu? Samurai vagabundo!” Se eu sentava numa mesa, sentavam em outra. Eu não tenho culpa de não ter morrido! Foi um acidente!
Saiba maisLIVRO
Thunder Gods: The Kamikaze Pilots Tell Their Story, Hatsuho Naito, Kodansha International/USA, 1989.
Conta a história de alguns dos milhares de kamikazes mortos na Segunda Guerra Mundial e de uns poucos sobreviventes, como o oficial Motoji Ichikawa.
Você quer saber mais?
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