A Arqueologia brasileira do século XIX se encerra dentro
do contexto nacionalista romântico, da valorização das origens de um povo. Na
prática, seu objetivo era conferir nobreza ao passado de um lugar chamado
Brasil, nação recém-nascida a quem o governo imperial procurava atribuir
caráter de civilização (BARRETO, 1999-2000; FERREIRA, 2003; FUNARI, 2003;
GUIMARÃES, 1988). As pesquisas arqueológicas da época dedicavam-se, portanto, a
estudar povos indígenas e a buscar os vestígios de arquitetura monumental que
confirmariam a tese de que os indígenas seriam a degeneração de uma grande civilização
do passado. Esta suposta civilização seria a colonizadora do continente, e esta
ideia delimitava temática e temporalmente as pesquisas arqueológicas. O estudo
de épocas anteriores caberia à História Natural, ciência que buscava
compreender do ponto de vista paleoambiental a evolução ou sucessão de eras
geológicas.
Dessa forma, a construção da ideia de uma pré-história
americana, no século XIX, esbarrava em limitações metodológicas, mas, sobretudo
em impedimentos de ordem ideológica. Isto pois, por mais que se considerasse
alheios ao pensamento mitológico, quase não havia espaço entre os pressupostos
da ciência da época que admitisse uma ocupação humana do continente americano
em tempos remotos.
A prática arqueológica era realizada por colecionadores,
intelectuais amadores, curiosos e museus, que o faziam sem leis específicas ou
regulamentações, mesmo após a elevação da Arqueologia ao status científico,
conferido pelo IHGB em 1847. No âmbito privado, era encarada como uma atividade
de prestígio, um hobby, mas também um indicador de refinamento. Não era incomum
o trânsito internacional de peças arqueológicas raras, oriundas de escavações
pela Grécia ou Egito, por exemplo, a fim de adornarem galerias e salões
particulares.
Por outro lado, as explorações arqueológicas científicas
eram essencialmente fundamentadas em hipóteses criacionistas. Os princípios
norteadores destas pesquisas buscavam quase sempre constatar a veracidade dos
relatos bíblicos da criação, ainda que vestígios paleogeológicos testemunhassem
fortemente contra a cronologia estabelecida pela Bíblia e pela Igreja. Quando
Peter Lund realizou suas primeiras descobertas no carste de Lagoa Santa (MG),
nos idos da década de 1840, seus achados atestaram evidências da convivência de
seres humanos com “as grandes bestas extinctas”. Suas teses foram tão
rapidamente difundidas quanto refutadas pela comunidade científica nacional e
internacional (LUNA FILHO, 2007, p. 128).
Entre o amadorismo e a cientificidade estavam, portanto,
paleontólogos e arqueólogos no século XIX. Para a Ciência, de modo geral, a
existência de seres humanos em eras anteriores à “atual” era hipótese
descartada. Dessa forma, a relevância da pesquisa em sítios pré-históricos para
o delineamento das primeiras ocupações do território brasileiro foi ignorada e
a manutenção e preservação destes sítios foi severamente negligenciada. Mesmo
no período republicano, o debate acerca da proteção do patrimônio arqueológico,
a despeito de inúmeros esforços e projetos de lei, apenas em 1961 resultou em
uma lei mais abrangente e em âmbito federal. Esta década é caracterizada pelo
fortalecimento das instituições de pesquisa. Entretanto, Em um momento que não
havia diferenças significativas entre “profissionais” e “amadores”, a categoria
de “arqueólogo profissional” foi construída no bojo da campanha de proteção dos
sítios e em oposição aos “amadores”. […]
[Estes] foram proibidos de continuar o trabalho de coleta
de dados, e sítios foram totalmente destruídos sem que houvesse qualquer tipo
de registro. Por outro lado, os “arqueólogos” desenvolveram uma linguagem
restrita à comunidade científica, sem qualquer compromisso com a divulgação dos
resultados de pesquisa para a sociedade brasileira (GASPAR, 2004, p. 18-19).
Assim, o estabelecimento da Arqueologia como ciência apenas será compreendido
se considerarmos o processo de concepção de seus pressupostos científicos, além
das influências sociais, políticas e ideológicas desta época. Mas é a partir da
relação peculiar entre estes fatores que podemos entender a questão patrimonial
no Brasil atual.
Patrimônio
arqueológico sob a ótica legal
No Brasil, a formalização legal da proteção a sítios
arqueológicos foi resultado de um processo de décadas. Foram diversos esforços
originários de várias instituições, políticas e intelectuais, entre o primeiro
e já tardio projeto de lei, proposto pela Sociedade Brasileira de Belas Artes
em 1920, defendendo a nacionalização dos recursos, até a lei atual, nº
3924/1961.
Entretanto, o decurso da subordinação da questão às leis entre
as décadas de 1920 e 1960 esbarrou na indefinição do valor pré-histórico dos
sambaquis. Segundo Paulo Duarte (1968, p. 5), o primeiro Código de Minas
(Decreto-Lei nº 1985/1940), assinado durante o Estado Novo, classificou
indiscriminadamente terraços e sambaquis como “jazida mineral natural”, o que
trouxe graves prejuízos à Arqueologia no Brasil. De fato, nesse contexto, a
nacionalização das jazidas minerais, antes de visar a proteção de sítios
pré-históricos, coadunava com as políticas desenvolvimentistas do período
varguista. Dois anos depois, o Decreto-Lei nº 4146/1942 estabeleceu uma vaga
discriminação entre as explorações econômicas e científicas. Duarte afirma
ainda que “Em São Paulo, porém, graças à vigilância implacável do Instituto de
Pré-História, a lei [nº3924/1961] vigora” (1968, p. 5). A particularidade da
Lei nº nº3924/1961 é que esta abrange qualquer monumento pré-histórico ou
arqueológico, a estatização destes bens, a preservação por parte do Estado e a
insubmissão destes às regras gerais da propriedade privada.