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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Europa no difícil caminho para a liberdade e a democracia

Brasil amplia presença nos países africanos de língua portuguesa

Presença das novelas brasileiras nos países africanos de língua portuguesa é só o lado visível de um fenômeno que tem também aspectos econômicos e políticos: o crescente interesse do Brasil pelas ex-colônias de Portugal.

Quem anda pelas ruas de Maputo, capital de Moçambique, pode facilmente ouvir jovens usando gírias tiradas de novelas da Globo, como "Eu sou chique, bem!" e "Tá podendo!".

Nas bancas de jornais de Luanda, capital de Angola, revistas especializadas em televisão estampam atrizes brasileiras na capa, como Taís Araújo e Juliana Paes.

Também em Luanda é fácil encontrar franquias de redes populares no Brasil, como Bob's, Mundo Verde e O Boticário. Isso sem falar nos templos da Igreja Universal do Reino de Deus, presente em todos os países africanos de língua portuguesa.

As novelas da Globo, as lanchonetes do Bob's e os templos da igreja de Edir Macedo são apenas a face visível de um fenômeno relativamente recente: a crescente presença brasileira nas antigas colônias portuguesas na África. Além do visível aspecto cultural, essa presença possui um viés econômico e outro político.

Relações econômicas priorizam Angola e Moçambique

Atriz Taís Araújo na capa de uma revista de AngolaBildunterschrift: Großansicht des Bildes mit der Bildunterschrift: Atriz Taís Araújo na capa de uma revista de Angola

O lado econômico é especialmente forte na relação com Angola – cuja independência, em 1975, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer. Apenas quatro anos depois, a Petrobras chegava ao país africano, hoje o terceiro maior produtor de petróleo da África.

Mas, segundo o site da petrolífera, foi só recentemente – a partir de novembro de 2006 – que a empresa passou a atuar de forma mais agressiva em Angola, como operadora em três blocos de exploração de petróleo.

Também forte em Angola é a Construtora Norberto Odebrecht, que está no país desde 1984, quando iniciou a construção da hidrelétrica de Capanda, com capacidade de geração de 520 megawatts.

Hoje a empresa atua em diversos setores, como a construção de rodovias e em projetos de pavimentação, saneamento e urbanização, empregando mais de 24 mil pessoas.

"As relações do Brasil com Angola são muito mais intensas e muito mais antigas", afirma o sociólogo alemão Gerhard Seibert, do Centro de Estudos Africanos de Lisboa. "Mas Moçambique também desempenha um papel econômico cada vez maior."

Na província de Tete, no centro de Moçambique, a mineradora brasileira Vale está investindo 1,3 bilhão de dólares para extrair carvão de uma das maiores minas não exploradas do mundo. A produção anual deverá chegar a 11 milhões de toneladas a partir de dezembro de 2010 e empregar 1,5 mil pessoas. O contrato foi assinado em 2007.

Brasil busca papel maior no cenário internacional

No aspecto político, Seibert vê uma clara mudança na política brasileira para a África com a chegada à presidência de Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro de 2003.

Lula foi o presidente brasileiro que mais viagens fez à África – foram dez até o final de 2009, incluindo todos os países de língua portuguesa, alguns mais de uma vez. Também no seu governo, o número de países africanos nos quais o Brasil possui representação diplomática passou de 18 para 34.

Na opinião de Seibert, essa valorização da África na política externa brasileira segue objetivos econômicos: a busca de mercados para produtos e empresas brasileiras e a garantia de matérias-primas.

Mas há, também, objetivos políticos: "As relações com a África fazem parte de uma política externa que tenta dar um papel maior ao Brasil no contexto internacional, e isso inclui a ambição de ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU".

Para o especialista, a África é só uma parte da política externa "mais expansiva" adotada pelo governo Lula. Ela inclui ainda a maior presença do país em fóruns internacionais como o G20 ou as reuniões com os países BRIC (Rússia, Índia e China).

Já Lula apresenta sua política africana como o pagamento de uma dívida, afirmando que o Brasil tem um compromisso moral e ético com o continente, uma referência ao passado escravagista brasileiro. O presidente gosta de repetir que o Brasil é o país com a maior população negra fora da África.

Estudar no Brasil

As frequentes visitas à África trouxeram popularidade a Lula no continente, o que, somado ao mundo idílico apresentado em várias novelas televisivas, acaba por reforçar uma imagem positiva do Brasil.

Primeiro-ministro Maria Neves estudou na FGVBildunterschrift: Großansicht des Bildes mit der Bildunterschrift: Primeiro-ministro Maria Neves estudou na FGV

"A imagem que temos do Brasil é muito boa, até porque a mídia que vem do Brasil são as novelas", conta o universitário são-tomense Edileny Lima de Souza, que estuda administração de empresas na PUC em Porto Alegre.

O guineense Francisco Ialá, que cursa Direito na mesma universidade, diz que também no seu país a imagem do Brasil é muito boa. "As novelas que mais passam na Guiné-Bissau são as brasileiras. Toda a cultura brasileira influencia a Guiné-Bissau."

Ambos encontraram um Brasil diferente do que aquele que conheciam pela televisão. "As novelas brasileiras não retratam a situação como ela é. É mais glamour, praia e coisas boas, sem os problemas de infraestrutura, desigualdade e preconceito. São coisas que eu vivenciei e não esperava", diz Edileny

Edileny e Francisco estão entre os quase 4 mil africanos selecionados para estudar no Brasil entre os anos de 2000 e 2009. Eles receberam uma bolsa de estudos do programa PEC-G, do Ministério das Relações Exteriores.

Na África, os principais beneficiados pelo programa são os países de língua portuguesa, Cabo Verde e Guiné-Bissau à frente. A maioria dos estudantes volta ao seu país de origem. Estudar no Brasil é algo comum entre os cabo-verdianos – até o primeiro-ministro do país, José Maria Neves, estudou na Fundação Getúlio Vargas (FGV) nos anos 1980.

Para Edileny e Francisco, o Brasil desempenha um importante papel no ensino superior. "Para os países lusófonos em desenvolvimento, o Brasil desempenha um papel importante na formação de quadros profissionais", diz Edileny, que afirma: "Volto para São Tomé porque quero ajudar meu país a crescer."

Autor: Alexandre Schossler

Revisão: Roselaine Wandscheer


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Lula diz em Lisboa que Brasil pode alavancar economia portuguesa.

Países firmam acordos, entre outras coisas, para impulsionar a língua comum

O Brasil vive no século 21 um momento mágico e excepcional de crescimento econômico e o potencial de que dispõe o país pode contribuir para alavancar a economia portuguesa, afirmou o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, no encerramento da 10º Cúpula Luso-Brasileira na noite desta quarta-feira (19/05).

As relações entre Portugal e o Brasil ganharam novo fôlego com a assinatura de cinco acordos institucionais e dois na área empresarial, que deverão ter forte impacto econômico. No final da sessão plenária, foram rubricados acordos e memorandos de entendimento abrangendo as áreas de luta contra a dopagem, igualdade de gênero, tecnologia para a exploração de hidrocarbonetos na bacia do Atlântico, energias renováveis e meio ambiente.

Portugal oferece aos brasileiros seus conhecimentos no domínio do saneamento básico. No plano empresarial, ganhou destaque a parceria entre a Petrobras e sua congênere portuguesa Galp, com um suporte financeiro de 350 milhões de euros em projetos tecnologicamente avançados de produção de biocombustíveis. Um salto qualitativo sublinhado por Lula.

"Além de produzir um combustível limpo, nós vamos recuperar áreas degradadas, gerar empregos. Uma parte desse óleo será utilizada pela Petrobras numa refinaria lá mesmo, no estado do Pará, para atender a região norte do país, mas a grande parte vai ser refinada aqui em Portugal", disse Lula.

Em tempos de crise, que obrigam à adoção de medidas duras, o presidente brasileiro questionou a falta de uma governança global, já que as dificuldades são globais. E assegurou que o potencial que o Brasil tem pode ajudar a alavancar a economia portuguesa.

"Passamos por uma fase de afirmação dessa cooperação econômica. E os tempos exigem de nós um empenho nesse domínio. Eu quero que saiba, senhor presidente, do empenho de todas as empresas portuguesas e do governo português para receber investimentos brasileiros e também para afirmar investimentos português no Brasil", disse o primeiro-ministro português, José Sócrates, no Palácio das Necessidades.

Apesar das diferenças, atualmente são poucos os desacordos que marcam as relações entre os dois países. Ainda por resolver está a contenda entre a Portugal Telecom e a Telefônica, que quer comprar da empresa portuguesa a participação desta na Vivo, no Brasil. Mas, por outro lado, Bruxelas acaba de dar luz verde aos projetos da Embraer, fabricante aeronáutica brasileira, que quer construir duas unidades em Évora.

Ainda durante a visita, que deve ser a última que Lula faz a Portugal como chefe de Estado e de governo, teve bastante espaço o componente cultural. Os dois países acordaram impulsionar o Plano de Ação para a Promoção, Difusão e Projeção da Língua Portuguesa.

Antes do encontro com Sócrates, o presidente brasileiro foi recebido pelo seu homólogo, Cavaco Silva, com quem, pouco depois, participou da cerimônia de entrega do Prêmio Camões de 2009 ao poeta e romancista cabo-verdiano Arménio Vieira.

Autor: João Carlos (np)
Revisão: Rodrigo Rimon

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Os brancos que se entendam.

Essa expressão nasceu de uma pendenga ocorrida no comando militar do Rio de Janeiro do século 18 e remonta a uma das primeiras punições por racismo no Brasil. Segundo o folclorista Luiz da Câmara Cascudo, certo dia o capitão do Regimento dos Pardos do Rio de Janeiro, Manuel Dias de Resende, foi queixar-se a seu superior por ter sido desrespeitado por um soldado. Diante da reclamação, o major Melo, comandante do Regimento, nada fez a não ser desprezar: “Vocês são pardos, lá se entendam!”. “No século 18, era comum esse tipo de divisão racial entre os regimentos”, diz Célia Azevedo, historiadora da Unicamp.

Ofendido novamente, o capitão Manuel recorreu a dom Luís de Vasconcelos e Souza, vice-rei (governador) da província entre 1779 e 1790. O governador logo mandou prender o major que não levara a reclamação a sério. Sem entender por que estava sendo preso, o major Melo perguntou: “Preso, eu? E por quê?” A resposta foi na mesma medida: “Nós somos brancos, cá nos entendemos”. Com o passar dos anos, a frase tomou a forma atual.

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Disputa por Cuiabá causou massacre.

No século 19, grupo de brasileiros matou centenas de portugueses

por Anselmo Carvalho Pinto

Era meia-noite de 30 de maio de 1834 quando Cuiabá foi tomada pelo som de cornetas e tiros de arcabuzes. Saindo do Campo do Ourique, no centro da capital de Mato Grosso, 80 homens começaram a invadir e saquear casas. A ordem era matar os portugueses e arrancar suas orelhas como troféu. Ao amanhecer, centenas de pessoas estavam mortas. A rebelião ficou conhecida como Rusga. “O movimento se expandiu pelas redondezas”, diz a historiadora Elizabeth Siqueira, autora de História de Mato Grosso.

O massacre foi motivado pela mudança no comando do país, três anos antes. Em 1831, dom Pedro I (1798-1834) voltou para Portugal e deixou o filho, de 6 anos. Até que dom Pedro II (1825-1891) alcançasse a maioridade, o Brasil seria comandado por regentes. A situação inspirou conflitos em vários locais. Cuiabá se dividiu entre liberais brasileiros e portugueses conservadores. O levante liberal foi bem-sucedido. O grupo permaneceria no governo até 1842, quando começou um período de alternância de poder.

Assassinato sem culpado
Morte do presidente da província é mistério

Pouco antes da Rusga, a Regência quis impedir que os liberais pegassem em armas. Para isso, assumiu a presidência da província João Poupino Caldas. Liberal moderado, ele tentou barrar a rebelião, sem sucesso. Em setembro de 1834, foi afastado.

O novo gestor, Antônio Pedro de Alencastro, prendeu e processou os líderes do motim (leia ao lado). Mas foi seu antecessor, Poupino, quem assinou o processo contra os colegas de partido. Em 1836, ele decidiu deixar Cuiabá. No dia da despedida, foi morto pelas costas com uma bala de prata. O autor do disparo nunca foi encontrado. Pouco depois, começou a circular na cidade uma quadrinha anônima: "No dia nove de maio/ Depois da Ave Maria/ Matei Coronel Poupino/ Fiz tudo o que queria".

Líderes inocentados
Nenhum deles foi para a cadeia

Pascoal Domingues de Miranda
Juiz de direito. Julgado no Rio de Janeiro, foi considerado inocente e se estabeleceu na cidade.

José Alves Ribeiro
Fazendeiro próspero da região, também foi inocentado no Rio. Depois, voltou para Cuiabá.

Caetano Xavier da Silva Pereira
Major da Guarda Nacional, liderou os revoltosos e acabou julgado inocente.

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Martin Luther King: A agonia de um rei em depressão

Um dos maiores heróis americanos, Matin Luther King enfrentou a injustiça de uma nação. Mas, por trás do poderoso líder, havia um homem infiel e deprimido, que vivia à sombra do suicídio.

por Adriana Maximiliano

Quando foi avisado de que tinha ganhado o prêmio Nobel da Paz, em 14 de outubro de 1964, Martin Luther King Jr. estava sob o efeito de tranqüilizantes, sozinho num quarto de hospital em Atlanta. Sua mulher, Coretta Scott King, ligara para dar a notícia. Logo depois, o quarto foi inva­dido por fotógrafos. Os jornais do dia se­­­­­guin­te diriam que King tinha sido inter­nado três dias antes, sofrendo de febre e exaustão. Uma meia verdade. Aos 35 anos, ele estava lá por causa de um problema que o acompanhava desde criança: a depressão.

A imagem de King que se eternizou é a do pastor, líder político e pacifista que lutou pela igualdade entre negros e brancos nos Estados Unidos. Um homem corajoso e otimista. Mas ele também era frágil e vulnerável. “Durante entrevistas que fiz com amigos de Martin Luther King, seu comportamento deprimido foi citado inúmeras vezes. Ele chegou a questionar em alguns momentos se sua vida valia a pena. Mas essas histórias de desespero não ganharam os jornais na época porque a imprensa não costumava noticiar dramas desse tipo como faz hoje”, diz o escritor americano Taylor Branch, que passou um quarto de século estudando a vida de King e, no ano passado, lançou At Canaan’s Edge (“À beira de Canaã”, inédito no Brasil), o último volume de uma trilogia sobre o líder.

Entre 1965 e 1968, nos anos finais de sua vida, King estava numa encruzilhada. Depois da vitória contra as leis racistas dos Estados Unidos, o líder se envolveu com causas como a luta contra a Guerra do Vietnã. Ao fazer isso, perdeu o apoio de vários aliados, fossem eles negros ou brancos. Enquanto isso, seus constantes casos extraconjugais eram usados pelo FBI (a polícia federal americana) para desestabilizar seu casamento e aprofundar sua depressão. O objetivo era tirar King da vida pública – ou mesmo fazê-lo dar cabo da própria vida. Em meados dos anos 60, o homem que enfrentara todo o racismo de uma nação estava encurralado, ameaçando sucumbir ao próprio sofrimento.

No caminho, uma Rosa

Nascido em 15 de janeiro de 1929, em Atlanta, no estado da Geórgia, King vivia com os pais, os irmãos e a avó materna, Jennie Williams. Quando o menino tinha 5 anos, ela sofreu um desmaio em casa. King não suportou a idéia de que Jennie pudesse ter morrido. Subiu as escadas correndo e se jogou por uma janela do segundo andar. Sua mãe, Alberta, o encontrou no quintal, estatelado no chão – o pequeno King só abriu os olhos depois que disseram que Jennie estava bem. A cena se repetiria sete anos depois, em maio de 1941. Ao saber que sua avó tinha sofrido um ataque cardíaco, voltou correndo para casa e encontrou a família chorando. King se jogou pela mesma janela, sobrevivendo de novo. Mas, dessa vez, a avó estava morta. O menino passou diversas noites em claro, chorando sem parar.

O lado depressivo do garoto contrastava com as boas condições de sua família. Martin Luther King pai, pastor da Igreja Batista, era o negro mais bem pago de Atlanta. Nascido Michael, ele trocara o nome para Martin Luther em 1935, homenageando o fundador do protestantismo. A mudança se estendeu ao filho, que acabaria herdando também a vocação religiosa. Aos 19 anos, Martin Luther King Jr. se formou em Sociologia no Morehouse College, a melhor escola para negros de Atlanta. Em 1954, depois de se doutorar em Teologia pela Universidade de Boston, King se tornou pastor batista em Montgomery, no Alabama.

Nos anos 50, King já estava envolvido na luta pelos direitos dos negros: era do comitê executivo da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês). Nos estados americanos do Sul, como o Alabama, os negros eram cidadãos de segunda classe. Não podiam votar, eram proibidos de entrar em certos clubes, lojas e igrejas e, no transporte público, tinham que dar preferência aos brancos.

Em 1º de dezembro de 1955, toda essa discriminação foi posta em xeque por uma inofensiva costureira negra de 42 anos. Cansada e com dores nos pés depois de um dia de trabalho, Rosa ­Par­ks se recusou a ceder seu lugar no ônibus a um homem branco. Foi presa. Ao saber da notícia, King e outros líderes da NAACP transformaram o caso de Rosa no estopim da luta contra a desigualdade racial que ficaria conhecida como o Movimento pelos Direitos Civis. No dia seguinte, os negros de Montgomery iniciaram um boicote aos ônibus, sob a liderança do quase desconhecido pastor de 26 anos. Foram necessários 382 dias até que, em 21 de dezembro de 1956, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarasse inconstitucional a segregação racial nos transportes públicos do país.

Durante o boicote em Montgomery, viajando cerca de 25 dias por mês, King se tornara respeitado em todo o Sul dos Estados Unidos. Em contrapartida, tinha sido preso, criticado por membros de sua igreja e acordado inúmeras vezes de madrugada por telefonemas com ameaças. Diante disso, King não escondia a importância do apoio da esposa. Ele e a musicista Coretta haviam se conhecido em Boston, em 1952. O casamento rendeu quatro filhos ao casal, mas não era um modelo a ser seguido. Desde o primeiro momento, o pastor foi infiel. Quando estava longe de casa, King se encontrava com várias amantes.

Um sonho de liberdade

Apesar do fim da segregação no transporte público, o racismo continuava em várias instituições dos Estados Unidos. Após o boicote de Montgomery, Martin Luther King continuou trabalhando por reformas. Seguidor declarado de Mahatma Gandhi, ele promovia manifestações pacíficas como boicotes, greves e passeatas, pontuadas por seus poderosos discursos. Em 1957, ele ajudou a fundar a Conferência da Liderança Cristã Sulista (SCLC, na sigla em inglês), instituição que presidiu até a morte.

Diversas organizações iam surgindo para engrossar o Movimento pelos Direitos Civis. O problema é que elas muitas vezes acabavam entrando em conflito entre si. Uma das principais polêmicas era a doutrina de não-violência de King. No início dos anos 60, ela ainda soava bem, mas já não convencia os que estavam cansados de apanhar da polícia. O líder muçulmano Malcolm X, por exemplo, não hesitava em dizer que os negros deviam responder com violência à brutalidade das autoridades. King, entretanto, tinha boas razões para preferir o pacifismo: ele fazia com que a violência vista no noticiário fosse protagonizada pela polícia. Assim, o público americano tendia a simpatizar cada vez mais com a causa da SCLC – e a doar dinheiro para a instituição.

Em abril de 1963, King lançou uma campanha para acabar com a segregação nos banheiros e lanchonetes de Birmingham, no Alabama, então considerado o mais racista dos municípios americanos. Durante uma passeata na cidade, o pastor acabou preso. A cadeia não era novidade para King – ao todo, foram mais de 20 prisões –, mas, daquela vez, o presidente John Kennedy interveio diretamente por sua libertação. O prestígio do pastor estava no auge. Em 28 de agosto, King liderou a Marcha sobre Washington, que reuniu mais de 200 mil pessoas na capital americana. Diante delas, disse estar feliz por fazer parte da “maior manifestação pela liberdade” da história dos Estados Unidos. Essas palavras foram o início de um dos mais pungentes discursos de todos os tempos, que ficaria conhecido como “Eu tenho um sonho”. Por 16 minutos, King hipnotizou a multidão enquanto dizia sonhar com o fim da discriminação racial, evocando desde a Bíblia até a Declaração de Independência americana. Foi ovacionado.

A eloqüência de King chamou a atenção de todo o país. Inclusive a do FBI. Em um documento secreto escrito após a Marcha, ele foi apontado pelo órgão como “um potencial messias, capaz de unificar e eletrificar o movimento nacionalista negro”. O relatório citava uma prova inequívoca do carisma de King: sua nomeação, pela revista Time, como o Homem do Ano de 1963 – honraria inédita para um negro. A conclusão do documento não deixava dúvidas: era preciso acabar de uma vez com a influência do pastor.

Vitória e angústia

O assassinato do presidente John Kennedy, em 22 de novembro de 1963, fez King ter um mau pressentimento sobre a morte. “É o que também vai acontecer comigo. Esta sociedade está doen­te”, disse ele a um amigo logo após o atentado, de acordo com Taylor Branch. Sem dúvida, King era um alvo potencial da ira alheia. Afinal, ele não era só um líder pacifista negro. Era o maior ativista de esquerda dos Estados Unidos.

Durante todo o ano de 1964, o excesso de trabalho, as ame­a­ças anônimas e as intrigas en­tre as organizações negras fizeram King sair de cena. Segundo Branch, o líder se tornou assíduo freqüentador do hospital St. Joseph – onde, inclusive, receberia a notícia do Nobel. “Ele pediu para ser internado lá pelo menos uma dezena de vezes, porque só assim podia ficar sozinho e descansar à base de pílulas para dormir”, afirma. Mas, em 2 de julho, King interrompeu o isolamento para viver outro mo­mento de glória em Washington: a cerimônia em que o presidente Lyndon Johnson assinou a Lei dos Direitos Civis, que tornou inconstitucional toda a legisl­a­­­ção segregacionista dos Estados Unidos.

A euforia pela conquista histórica não significou o fim do Movimento pelos Direitos Civis. Faltava ainda garantir que os negros do Sul pudessem votar sem restrições. Isso motivou King a promover mais uma grande marcha, partindo da cidade de Selma em direção a Montgomery, em março de 1965. A polícia tentou parar os manifestantes, que resistiram sem violência até conseguir che­gar ao destino final. Cinco meses depois, a Lei do Direito ao Voto foi aprova­da pelo Con­­gresso, a­ca­­­­­­­­­bando com os en­­traves legais para os negros nas eleições.

Dez anos depois do início do boicote aos ônibus, o Movimento pelos Direitos Civis havia conseguido, ao menos em termos de legislação, igualar negros e brancos nos Estados Unidos. A vitória poderia ter garantido a King dias de felicidade. Mas sua vida privada estava em frangalhos. No início de 1965, quando ele ainda estava preparando a marcha de Selma, Coretta tinha recebido um pacote com uma fita e uma carta anônima. As gravações traziam conversas de King com amigos e mulheres, em que a infidelidade do pastor ficava clara – Coretta estava acostumada a denúncias e amea­ças, mas jamais tinha recebido uma fi­ta comprometedora com a voz do marido. Já o texto da carta que acompanhava a gravação dizia que King era “uma vergonha para todos nós negros”. No fim, o autor sugeria que ele cometesse o suicídio: “Você se acabou. King, só resta uma coisa a ser feita. Você sabe o que é. Só existe uma saída. É melhor você pegá-la antes que seu lado nojento, anormal e fraudulento seja revelado para a nação”.

A carta e a gravação não tinham sido obra de um membro do movimento negro. Elas eram um golpe baixo da campanha do FBI contra King. Diálogos sobre adultério haviam sido obtidos com gravadores colocados na casa e no escritório de King, além de grampos em telefones de quartos de hotel. Os agentes federais sabiam que, por causa da depressão crônica, King seria capaz de se matar num momento de crise. A fita era uma tentativa de fazer com que isso acontecesse – essa tenebrosa estratégia foi posteriormente admitida por William C. Sullivan, ex-diretor-assistente do FBI, num depoimento dado ao Senado americano em 1975.

A explosiva fita acabou chegando às mãos de políticos, religiosos e jornalistas. A idéia de suicídio não foi levada adiante, mas a depressão do líder se agravou. “King reclamou que suas pílulas para dormir não estavam fazendo mais efeito”, escreveu Taylor Branch em At Canaan’s Edge. Em público, se limitou a fazer um mea-culpa nas entrelinhas de seus sermões na igreja, dizendo coisas como: “Eu nunca me coloquei como um grande modelo, mas tenho que fazer o melhor possível para redimir a mim mesmo e a América.”

Memória americana

Depois da aprovação da Lei do Direito ao Voto, a vida política de King precisava de uma nova causa. Ainda em 1965, ele decidiu usar o Movimento pelos Direitos Civis para se opor à Guerra do Vietnã, em que os Estados Unidos haviam acabado de entrar. King foi atacado por todos os lados, incluindo amigos e inimigos. Ninguém queria que ele se metesse com o conflito – que ainda não tinha se torna­do um evidente beco sem saída. King mu­­dou o discurso e apostou na chamada Campanha dos Pobres.

A luta contra a pobreza nem de longe contava com a simpatia que King arrebanhara para a questão racial. Ativistas próximos do líder achavam que o melhor seria se preocupar em fortalecer as conquistas dos negros no Sul do país. A falta de resultados em suas novas lutas aumentou o desalento de King. Duas semanas depois de completar 39 anos, pressionado por Coretta, ele finalmente resolveu admitir um de seus casos extraconjugais. Ainda assim, a esposa foi capaz de seguir ao lado dele.

Em 4 de abril de 1968, King estava em Memphis, no Tennessee, para apoiar uma greve de lixeiros. Sua liderança estava desgastada, assim como sua capacidade de sonhar com um país mais justo. A desilusão dava o tom do sermão que ele começou a escrever naquela tarde, intitulado “Por que a América deve ir para o inferno”. O texto ficou inacabado. Às 18h01, enquanto conversava com amigos na sacada do Lorraine Motel, King levou um tiro no pescoço. Hospitalizado, morreu por volta das 19h. Cinco dias depois, o pastor foi enterrado em Atlanta, num funeral acompanhado por 300 mil pessoas. O suposto assassino foi capturado, mas o crime nunca foi esclarecido (veja quadro acima).

Após sua morte, Martin Luther King Jr. virou nome de ruas, escolas e bibliotecas e ganhou um feriado nacional nos Estados Unidos (a terceira segunda-feira do mês de janeiro). Em 2008, deverá ser inaugurado seu memorial no National Mall – a esplanada em Washington, próxima à Casa Branca, onde foi feito o discurso “Eu tenho um sonho”. Além do líder negro, apenas os ex-presidentes Thomas Jefferson e Abraham Lincoln conquistaram honraria semelhante.

O King eternizado no panteão dos heróis americanos, entretanto, não é o mesmo que foi morto em Memphis. Em tempos de invasão do Iraque, a história do King que protestou contra a guerra e a pobreza tem sido deixada de lado. O historiador americano David J. Garrow, autor de um premiado livro sobre o pastor – Bearing the Cross (“Carregando a cruz”, inédito no Brasil) –, não estranha esse esquecimento. “Os Estados Unidos preferiram a imagem romantizada de um homem doce e otimista. Principalmente porque o King dos anos finais ainda seria um estorvo até hoje, no governo de George W. Bush.

Os quase aliados

Quatro líderes e suas relações controversas com King

Ralph Abernathy

Amigo e braço direito de King, o reverendo sabia falar com os negros humildes – o pastor se dava melhor com os intelectuais. Mas Abernathy não era tão leal: quando King ganhou o Nobel, ele achou que merecia metade do dinheiro. Acabou faturando bastante ao lançar uma autobiografia cheia de fofocas sobre a vida sexual de King. Morreu em 1990.

John Kennedy

Graças ao apoio de King, o democrata conquistou os votos da comunidade negra e foi eleito presidente dos Estados Unidos em 1960, derrotando o rival Richard Nixon por uma diferença de menos de 1%. Em agradecimento, Kennedy apoiou o Movimento pelos Direitos Civis. Antes de ser assassinado, em 1963, teria convencido King a não fazer um discurso muito crítico ao governo na marcha de Washington.

Malcolm X

O objetivo de ambos era o mesmo: combater a discriminação. Mas, enquanto King optava pelo pacifismo, Malcom X defendia que os negros reagissem com violência. Essas diferenças impediam acordos entre os dois, que só se encontraram uma vez, em 1964. No ano seguinte, Malcolm X foi morto a tiros (King morreria da mesma forma, com a mesma idade: 39 anos).

Lyndon Johnson

Vice de Kennedy, assumiu a presidência em 1963 e a manteve nas eleições de 1964. Johnson negociou com King a elaboração das leis dos Direitos Civis e do Direito ao Voto, aprovadas em seu governo. Mas, quando o ativista se pronunciou contra a Guerra do Vietnã, o presidente parou de colaborar com ele – e chegou a chamá-lo de “pastor hipócrita”. Johnson deixou o cargo em 1969 e morreu em 1973

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