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terça-feira, 26 de novembro de 2013

Por que os nazistas estavam interessados em uma estátua esculpida em um meteorito?




Como muitos meios de comunicação estão relatando atualmente, uma análise de uma estátua antiga descoberta pelos nazistas em 1938, mostra que ela foi esculpida a partir de um fragmento de meteorito. Datada do século XI, a impagável escultura do "Homem de Ferro" pesa 10 kg e acredita-se ser a primeira escultura de um humano em um meteorito - que colidiu com a Terra há mais de 15.000 anos atrás. É claro que os nazistas não sabia que a estátua foi feita a partir de um meteorito - então por que trazê-la para a Alemanha? E o que eles estavam fazendo no Tibete, em primeiro lugar?

De acordo com alguns especialistas, a estátua é um híbrido estilístico entre a cultura budista e pré-budista Bon que retrata o deus Vaisravana, o rei budista do Norte, também conhecido como Jambhala no Tibete. Ele também possui uma suástica aparente na frente - algo que certamente teria atraído à atenção dos nazistas que a descobriram.


A expedição de 1938 para o Tibete foi liderada pelo renomado zoólogo Ernst Schäfer. Após a guerra, Schäfer afirmou que a expedição da SS era promover suas investigações sobre a vida selvagem e da antropologia do Tibete. Os historiadores, por outro lado, suspeitam que Heinrich Himmler - Chefe da SS - apoiou a expedição por suas próprias razões.

E, de fato, ele forçou todos os arqueólogos para se tornarem membros da SS, a fim de tomar parte na expedição. Isto foi para garantir que a teoria pseudocientífica de Hans Hörbiger de "Cosmogonia Glacial" (uma teoria bizarra sugere que o gelo era a substância fundamental de todos os processos cósmicos). Além disso, ele poderia usar a expedição para promover o seu interesse no misticismo asiático.


Na verdade, Himmler, que era fascinado pelo misticismo e ocultismo, estava interessado em encontrar a prova da superioridade ariana e nórdica desde os tempos antigos. Ele suspeitava que parte dessa "prova" poderia ser encontrada no Tibete, daí a expedição. Arqueologia nazista, raramente foi realizada para fins de investigação genuína. Em vez disso, era uma ferramenta de propaganda usada para perpetuar o orgulho nacionalista alemão e fornecer justificativas científicas para a conquista.

Dezoito anos antes, o partido nazista havia adotado a suástica como sua insígnia oficial. Era um símbolo antigo, que remonta ao período Neolítico e foi descoberto pela primeira vez no Vale do Indo e Índia. Foi usado mais tarde no hinduísmo, budismo, jainismo para simbolizar boa sorte. Outros significados incluem "ser bom", "estar com eu superior", e mesmo "a eternidade."


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Agentes de fronteira da Stasi tinham ordens para matar fugitivos


Documento da polícia secreta da Alemanha Oriental mostra que agentes não deveriam hesitar em utilizar armas de fogo contra fugitivos mesmo que entre eles houvesse crianças.

Um documento que se tornaram público mostram que agentes de fronteira da Stasi, a polícia secreta da antiga Alemanha Oriental, tinham ordens de atirar para matar contra fugitivos do regime comunista alemão. O documento foi encontrado nos arquivos regionais da cidade de Magdeburg e tem data de 1º de outubro de 1973.

"Não hesite em utilizar armas de fogo mesmo que a fuga pela fronteira ocorra ao lado de mulheres e crianças, o que traidores já utilizaram com freqüência", está escrito no documento, que é dirigido a agentes da Stasi que agiam incógnitos entre guardas da fronteira na região de Magdeburg e tinham por missão identificar soldados que estivessem dispostos a fugir.

Em muitos casos, as tentativas de fuga aconteciam com a família. Historiadores calculam que mais de 2,8 mil soldados tenham desertado e fugido para a Alemanha Ocidental. Já o número de pessoas que foram mortas durante tentativas de fuga é impreciso e varia entre 270 e 780.

A revelação da existência do documento foi feita pelo jornal Magdeburger Volksstimme e ocorreu às vésperas do aniversário de 46 anos (2007) da construção do Muro de Berlim.

Controvérsia

O achado provocou controvérsias na imprensa alemã. Um porta-voz do escritório responsável pela administração dos arquivos da Stasi, Andreas Schulze, confirmou a informação do jornal e apresentou o documento como sendo a primeira prova de que havia uma ordem do governo da Alemanha Oriental para matar fugitivos.

Após vários relatos na imprensa de que um texto praticamente igual já havia sido tornado público em 1997, numa antologia publicada pelo historiador Matthias Judt, os responsáveis pelos arquivos da Stasi reconheceram neste domingo que a descoberta de Magdeburg não é inédita.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

65 anos do Nakba: A limpeza étnica da Palestina e as responsabilidades ocidental e brasileira.


Imagens do êxodo palestino em 1948.

No dia 29 de novembro de 1947, as Nações Unidas recomendaram a partilha da Palestina em dois Estados, um judeu e um árabe. Esse plano jamais foi integralmente implementado, no entanto, criou o cenário da guerra de 1948, durante a qual Israel foi unilateralmente estabelecido como um Estado judeu no dia 15 de maio, mediante a limpeza étnica de mais de três quartos do povo palestino, confiscando suas terras e impedindo o seu retorno. Essa guerra é lembrada pelos palestinos como a Nakba (catástrofe) e deu início a mais longa ocupação no mundo contemporâneo, a qual já dura 65 anos. Desde então, as políticas e práticas israelenses violam a lei internacional, incluindo a Quarta Convenção de Genebra e a Convenção Internacional de Supressão e Punição do Crime de Apartheid.

I- A Palestina Árabe

A derrota que os árabes impuseram ao domínio bizantino na Palestina, confirmado entre os anos 633 e 638 da era cristã, foi bem recebida pela população local, tanto por cristãos como por judeus e samaritanos, que ainda eram grupos numericamente importantes na região. Estes últimos grupos tinham todos os motivos para preferir a organização árabe, vítimas que já eram da intensa perseguição cristã, que só pioraria com os séculos (aliás, no início do período árabe na Palestina—que se estenderia pelos próximos 1.300 anos–, uma pequena população judaica voltaria a se estabelecer em paz em Jerusalém, depois de 500 anos de ausência, que datavam da sangrenta expulsão que os romanos lhe haviam imposto no segundo século da era cristã). O período árabe também foi bem recebido pelos cristãos da região, que “eram arameus [e] não ficaram incomodados pela organização árabe, pois a etnia era semelhante, de origem semítica”, não tendo eles “motivos para gostar da administração bizantina, de origem romana, não semítica”1. Na Palestina árabe, apesar de um imposto específico para judeus e cristãos, eles gozavam de proteção como “Povos do Livro”, e a atmosfera não tinha muito em comum com o regime de terrorífica perseguição que se instalaria nas regiões controladas pelo Cristianismo. A Sura 2 de Maomé explicitamente rejeita a conversão e o proselitismo violento: “Não obrigueis ninguém em assuntos de religião”. A violência sectária só voltaria a se disseminar na Terra Santa com as empresas cristãs de conquista conhecidas como Cruzadas, a primeira das quais foi proclamada pelo Papa Urbano II em 1095 e resultou no estabelecimento do “Reino de Jerusalém”, em 1099, uma fortaleza de reduzidas relações com seu entorno árabe, ironicamente semelhante, neste aspecto, ao enjaulamento que as construções israelenses ilegais hoje impõem a Jerusalém.

As cruzadas à Palestina enfrentariam os muçulmanos locais aos invasores cristãos, com a pequena população judaica da região frequentemente lutando ao lado daqueles contra estes, como em 1099, em Jerusalém, e em 1100, em Haifa. No século XII, na época da Segunda Cruzada, os muçulmanos se reunificam politicamente sob o comando do General Saladino, curdo nascido em Cairo. Saladino recupera Damasco (1174), Acre, Jafa, Beirute, e a própria Jerusalém, em 1187. Na Terceira Cruzada, Ricardo Coração de Leão derrotaria Saladino, forçando-o a negociar e celebrar o tratado de paz que “abriu caminho a um período de calmaria militar e tolerância religiosa na Palestina”2, permitindo aos cristãos visitar os lugares sagrados. A Quarta Cruzada (1199) planejava tomar o Egito por mar, mas fez um desvio para a região da atual Turquia, instalando o Império Latino de Constantinopla. A Palestina só voltaria a ser afetada pela Cruzada de Federico II que, conhecedor da língua árabe, foi capaz de “obter do sultão a entrega pacífica, embora condicionada, de várias terras e das cidades de Belém, Nazaré e Jerusalém, onde o imperador entrou e foi coroado em 1229”3. Já em 1244, Jerusalém voltaria ao poder dos árabes, e o último reduto cristão na Palestina, São João de Acre, cairia em 1291. O controle de toda a área entre o Jordão e o Mar Mediterrâneo—os atuais territórios de Israel e da Palestina Ocupada—permaneceria em mãos árabes até a invasão turco-otomana, em 1517. Mesmo durante o período marcado pela sua incorporação ao Império Turco-Otomano (de 1517 até 1917, com uma interrupção egípcia durante a década de 1830), a Palestina manteria sua enorme maioria árabe, organizada segundo laços sociais bem arraigados na região, que o império turco não alteraria significativamente.

As sucessivas demonstrações de desmemória na política ocidental para o Oriente Médio contrastam com o forte arraigo que certos eventos históricos possuem na reminiscência das massas árabes. Em 1993, acusado de estar celebrando com os israelenses, em Oslo, um tratado que não concedia nada aos palestinos e o instalava na posição de cão de guarda de Israel, o líder Yasser Arafat insistia, um pouco pateticamente (dadas as condições em que negociava), que ele não celebraria qualquer paz, mas “a paz de Saladino”. O leitor dos EUA não tinha a menor noção do que se referenciava ali, mas o povo árabe não deixava de notar a ironia involuntária da impotente insistência de Arafat na menção a Saladino. Antes de entrar no período histórico que imediatamente influencia o curso dos acontecimentos que nos ocupam, portanto, é boa ideia lembrar alguns fatos que se desprendem desse esquemático sumário de alguns séculos de história palestina. Inicia-se no século VII uma intensa arabização da região, que já era visível em séculos anteriores a Maomé, mas que solidifica suas raízes com a chegada dos árabes a Jerusalém, em 638, e a construção da mesquita Al-Aqsa. Durante os próximos 1.300 anos os árabes serão a grande maioria em toda a região da Palestina. No período das Cruzadas, estima-se que havia em torno de 1.000 famílias judias na região.4 Em 1914, já depois das primeiras ondas migratórias estimuladas pelo sionismo, a Palestina (ainda, naquele momento, sob domínio otomano) tinha uma população de 657.000 árabes muçulmanos, 81.000 árabes cristãos e 59.000 judeus.5 De acordo com o censo da Palestina de 1922, feito pelos britânicos, a população era 78% muçulmana, 9,6% cristã (árabe, claro) e 11% judaica. No entanto, no jornalismo “ponderado” sobre a região, mesmo depois de 60 anos de limpeza étnica e 43 anos de ocupação ilegal, você verá desinformados funcionários da grande mídia dissertando, “mui ponderadamente”, sobre os “direitos” dos dois povos sobre a Palestina.

O domínio otomano sobre a Palestina dura de 1517 a 1917, com uma interrupção de 10 anos de administração egípcia na década de 1830. A submissão ao império turco não altera de forma significativa o regime de posse baseado na renda agrícola das terras, já visível no período do sultanato, anterior aos otomanos. Esse sistema relativamente descentralizado de vilas e aldeias, com arrecadação por senhores de terras e trabalho de cultivo por lavradores, arraiga-se na região e ajuda a explicar o terror dos palestinos com—e sua impotência para se defender contra—a violenta campanha de confisco de terras e separação de raças que se inicia com o armamento dos sionistas, nas décadas que antecedem a fundação do estado de Israel. Nas primeiras décadas do século XX, o sionismo armado traria à região um modelo eminentemente europeu de organização territorial e compreensão do espaço, caracterizado pela acumulação, posse e construção de barrreiras fronteiriças. Munidos desse olhar que historicamente relativiza os fatos, nos preparamos para explicar alguns “mistérios” que cercam a história recente: como foi possível que metade de uma população árabe palestina que já se media em bem mais de um milhão tenha sido expulsa tão rapidamente por algumas dezenas de milhares de colonos sionistas? Como foi possível que o nascente estado judeu tenha adquirido uma supremacia tão incontestável no conflito com seus vizinhos árabes e com os palestinos? Para repetir a pergunta que abre um artigo já clássico de Walid Khalidi: Por que os palestinos foram embora?6Observando a realidade relativamente fluida de comunicação entre as aldeias árabes, a intensa organização acumuladora de terras e de armas entre os colonos sionistas e o papel das grandes potências–particularmente da Grã-Bretanha—no processo, começamos a vislumbrar a explicação, que só se completará, claro, com um estudo do que aconteceu em 1948. A compreensão dessa diferença nos regimes de posse da terra, no entanto, é parte da explicação da vitória sionista. Essa explicação, aliás, não tem a menor necessidade de recorrer a estereótipos antissemitas do judeu mais esperto ou conspirador, nem a estereótipos antissemitas do árabe mais atrasado ou indolente, nem a falsificações da mitologia oficial israelense, que repetiram durante décadas que os palestinos saíram voluntariamente ou obedecendo a misteriosas ordens radiofônicas dos próprios árabes, mentiras já cabalmente corrigidas pela própria historiografia israelense. 



531 aldeias palestinas foram destruídas no Nakba. 


II – Da Declaração de Balfour (1917) à Palestina do Mandato Britânico (1922-48)

Quando se estuda o processo histórico pelo qual se chegou à atual, desastrada situação na Terra Santa, salta aos olhos a responsabilidade das potências ocidentais que, ao longo do século XX (para nos atermos à história mais recente), jogaram um jogo duplo, perigoso e marcado pela reversão do que se havia dito antes. Pensando em seu próprio interesse e em completa desconsideração pelo destino de milhões de civis inocentes, a Grã-Bretanha literalmente toca fogo na região, ao fazer promessas contraditórias aos povos árabes e ao movimento sionista. O reino de Sua Majestade não possui sequer a desculpa de que se tratava de uma causa nobre. Era 1916 e 1917, e tratava-se da consolidação de sua coalizão na Primeira Guerra Mundial. Ao contrário da Segunda Guerra, defensável como reação legítima à agressão nazi-fascista, a Primeira é um típico conflito napoleônico-clausewitziano moderno, um choque entre impérios. A Turquia, aliada dos alemães, mantinha a Palestina árabe sob o seu império otomano (como se viu acima, um jugo relativamente frouxo, onde a vida palestina seguia com considerável autonomia, situação que nem de longe tinha nada em comum com o horror das posteriores expulsão e ocupação israelenses). Interessada em atrair os árabes, a Grã-Bretanha promete para depois da guerra, em correspondência oficial entre Sir Henry Mac Mahon e o xeque Hussein, de Meca, a criação de um estado independente nas províncias do império turco em que se falava o árabe. A luta dos árabes contra a dominação otomana acabaria sendo decisiva para a vitória de seus aliados britânicos naquele front. Toda a evidência histórica demonstra que as lideranças árabes esperavam que os britânicos cumprissem sua palavra e confirmassem o estado árabe independente depois da guerra. Não foi o que aconteceu.

Ter prometido algo aos árabes não impediu que a Grã-Bretanha celebrasse com a sua aliada França um tratado contraditório com a promessa anterior. Os acordos de Sykes-Picot, de 1916, entre Grã-Bretanha e França, reservavam aos franceses a Síria e o Líbano. Em 1917, as forças otomanas se rendem ao general britânico Allenby em Jerusalém e em 1918 se confirma o fim do regime otomano na Palestina. O Tratado de Versalhes, de 1919, selaria o arranjo de Sykes-Picot entre França e Grã-Bretanha, deixando aos britânicos a área da Jordânia (então chamada de Transjordânia), do Iraque e da Palestina. A Liga das Nações, fundada depois da guerra, avalizaria esse arranjo, segundo o qual as duas potências ocidentais se responsabilizariam por um “mandato” temporário sobre essas regiões, até a sua independência formal. Em 22 de julho de 1922, a Liga das Nações aprova o mandato britânico na Palestina, que deixaria como legado o progressivo armamento dos colonizadores sionistas e a catástrofe palestina de 1948.

Ao mesmo tempo em que prometia independência aos árabes, o império britânico fazia sua famosa promessa ao movimento sionista internacional, a Declaração de Balfour (1917), patentemente contraditória com a promessa feita aos árabes e com o próprio arranjo subjacente a Sykes-Picot e a Versalhes. Enviada pelo secretário exterior britânico Arthur James Balfour ao Barão Rotschild, para transmissão à Federação Sionista da Grã-Bretanha e da Irlanda, a declaração mudaria a história do Oriente Médio: “O governo de Sua Majestade vê favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu, e usará seus melhores esforços para facilitar a realização desse objetivo, ficando claramente entendido que nada será feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judias existentes na Palestina, ou os direitos e status político desfrutados por judeus em qualquer outro país”. Apesar de que a declaração mencionava a preservação de todos os direitos da população nativa, é evidente que “Balfour não tinha nenhum interesse em consultar os árabes da Palestina acerca de seu futuro”7. Em suas memórias, Lloyd-George, primeiro-ministro em 1917, se refere à declaração como uma recompensa a Chaim Weizmann, um dos líderes sionistas mais importantes daquele momento (depois primeiro presidente de Israel) e químico que havia desenvolvido um método de sintetizar a acetona na produção de pólvora. A declaração também está inserida na tentativa de mobilizar as comunidades judaicas da Rússia e dos EUA no apoio aos esforços de guerra britânicos, e termina sendo um enorme estímulo ao movimento sionista. Depois da vitória aliada, o próprio Chaim Weizmann participaria da Conferência de Paz de Paris, em 1919, clamando por uma “Palestina tão judia como a Inglaterra é inglesa”8, num momento em que os judeus representavam não mais que 10% da população da Palestina. No ano seguinte, fundava-se na Palestina a Hagana, organização paramilitar judaica depois responsável pelo extermínio ou limpeza étnica de centenas de aldeias palestinas.

Só depois de três décadas (1880-1910) de migração, compra de terras e armamento sionistas é que aparecem os primeiros registros de preocupação entre as lideranças palestinas. Em 06 de maio de 1911, o palestino e membro do parlamento otomano, Said al-Husayni, apontava que “os judeus planejam criar um estado na área que incluirá a Palestina, a Síria e o Iraque”9. Segundo o historiador israelense Ilan Pappe, já entre 1905 e 1910 há alguma evidência de discussão, entre líderes palestinos, do fenômeno do sionismo como movimento político que acumulava poder e terra. Mas só a partir da queda do regime otomano na Palestina (1917) e o começo do período britânico (ocupação em 1918, mandato da Liga das Nações em 1922), o movimento sionista se lançaria paulatinamente a um plano de limpeza étnica dos árabes. Ali passa a ser visível a preocupação sistemática e, por vezes, o pânico das lideranças palestinas com as ondas migratórias, a acumulação de terras e a violência física que se iniciava. Mas ao longo das duas últimas décadas do século XIX e das duas primeiras do século XX, a imigração sionista não esteve entre as grandes preocupações dos palestinos.


Campo de refugiados Nahr al-Barid, Líbano, inverno de 1948

Na década de 1920, os palestinos representavam ainda uma maioria de 80% a 90% na região. A tentativa inglesa de construir estruturas paritárias que reconciliassem as promessas contraditórias feitas por eles ao povo árabe e ao movimento sionista encontrou compreensível resistência entre os palestinos, que “se recusaram, no começo, a aceitar a sugestão britânica de paridade, especialmente uma paridade que os colocava na prática em desvantagem—o que incentivou os líderes sionistas a endossarem-na”10. Começa a se desenhar ali um paradigma que seria reconhecível até os dias de hoje: 1) instala-se uma mediação ocidental que recomenda uma solução patentemente favorável ao sionismo; 2) os árabes protestam, apontando, como no caso em questão, que a paridade entre um povo que representa 90% da população e outro que totaliza 10% contraria o mais elementar princípio da democracia; 3) a liderança sionista, com intenso trabalho de relações públicas, manifesta concordância tática com a solução apresentada, sabendo que a recusa árabe os coloca na posição de, ao mesmo tempo, aceitar um plano e não se comprometer com ele; 4) enfraquecidos politica e militarmente, os representantes árabes voltam atrás e aceitam a solução originalmente apresentada pela potência ocidental; 5) ante a concordância árabe com o plano, é a vez da liderança sionista dizer que a solução lhe é inaceitável, o que lhe permite arrastar o impasse e, a partir de sua posição de força, aboncanhar mais e mais, ao mesmo tempo em que adia outra vez uma solução definitiva; a vitória não impede que a liderança sionista prolongue o impasse, reinstalado por um aumento das suas exigências; 6) esse prolongamento faz com que todo o ciclo se reinicie, com mais concessões árabes e mais impasse, até o ponto a que chegamos hoje, em que a população palestina já não tem o que oferecer, exceto alguma forma mágica de desaparição. Esse filme se repete com macabra previsibilidade, ante o olhar conivente das potências cúmplices (Grã-Bretanha e, depois, os EUA), desde 1928, vinte anos antes da fundação do estado de Israel. É a data em que as lideranças palestinas, “apreensivas com a crescente imigração judia ao país e com a expansão de seus assentamentos colonizadores, concordam com a fórmula [paritária] como uma base para as negociações”11. É a data em que os sionistas já não a aceitam e os britânicos permanecem de braços cruzados. Esses mesmos sete passos se repetirão em 1947-48, no episódio que os apologistas da ocupação israelense descrevem como o momento em que as Nações Unidas ofereceram um plano de partição “que os judeus aceitaram e os árabes recusaram”. Já veremos adiante todo o contexto que essa frase omite.

Entre 1924 e 1928 chegam mais 67.000 judeus (metade dos quais oriundos da Polônia), elevando a população judaica para 16% do total da Palestina do Mandato. Naquele momento, os judeus são donos de 4% da terra na Palestina. O censo de 1931 registra uma população de 1,03 milhão de almas, 16,9% judeus. A não implementação, por parte da Grã-Bretanha, da fórmula paritária que ela própria havia proposto, leva à rebelião árabe de 1929, o primeiro grande sinal de descontentamento com a política imposta no Mandato. Imagine um povo que representa quase 85% da população se rebelando, em sua própria terra, para ter a paridade que lhe havia sido proposta com os outros 15% que acabavam de chegar. Agora imagine que a autoridade administrativa responsável pela proposta se beneficiara da colaboração desse povo, como aliado seu, numa guerra mundial, e que a moeda de troca oferecida por essa colaboração não era paridade nenhuma, mas um estado seu, autônomo, em suas terras. Com isso você terá os elementos centrais para entender a primeira rebelião de desobediência civil árabe na Palestina moderna. Os confrontos em torno ao Muro das Lamentações em 1929 levam à morte de 133 judeus e 116 árabes, a maioria por mãos inglesas.12 Em 1931, funda-se o Irgun, outra organização paramilitar judia que se caracterizaria pelos ataques sangrentos aos árabes.

Ao se completar uma década e meia da queda do regime otomano e uma década da implantação do Mandato Britânico na Palestina, vão se configurando os elementos que produziriam a tragédia: 1) o fim da ameaça otomana ao sionismo, que depois de 15 anos já não tem que temer qualquer eventual expulsão sua da Palestina vinda do regime de Istambul; 2) o pesado armamento de grupos paramilitares sionistas como a Hagana e o Irgun, que vão acentuando a escolha por conquista e violência; 3) a perplexidade das lideranças palestinas, arraigadas em séculos de organização social descentralizada e não equipadas por sua experiência para se contrapor de forma efetiva à ofensiva territorial e armamentista do sionismo; 4) a incapacidade de setores das elites árabes de perceber a natureza do fenômeno sionista, vendo-o muito mais como uma “tentativa irresponsável por parte da Europa de transferir ao país o seu povo mais pobre e sem estado”13; e evidentemente 5) a subida ao poder do Partido Nacional Socialista alemão, que em menos de uma década alçaria 19 séculos de antissemitismo a níveis jamais vistos, com a intensa campanha de perseguições, agressões bélicas e matanças que culmina, já numa Europa em guerra, com o genocídio de 6 milhões de judeus. 


Poster da organização paramilitar judaica Irgun, 1937.

Qual é, então, a Palestina que assiste à invasão hitlerista da Polônia que dá início à Segunda Guerra Mundial em 1939? Robert Fisk acerta ao descrevê-la como presa a uma “atmosfera de suspeita, paranóia e intenso sofrimento”, tanto para árabes como para judeus, “os primeiros com medo de a Grã-Bretanha acabar autorizando a fundação do estado israelense em suas terras, e os segundos observando a aniquilação de sua raça na Europa”14. Não há dúvidas de que, na medida em que vão ficando visíveis as dimensões do Holocausto judeu na Europa, reforça-se a percepção sionista de que a implantação de seu estado na Palestina é uma questão de sobrevivência. Mas antes mesmo do início da Segunda Guerra Mundial, em 1938, a voz de historiadores como George Antonius já se levantava contra a eventual “resolução” do problema às custas dos árabes palestinos:

O tratamento dado aos judeus da Alemanha e outros países europeus é uma vergonha para seus autores e para a civilização moderna; mas a posteridade não exonerará nenhum país que não consiga enfrentar sua parte dos sacrifícios necessários para aliviar o sofrimento e a angústia dos judeus. Impor a maior parte da carga à Palestina árabe é uma miserável forma de esquivar-se das responsabilidades que deveriam recair sobre todo o mundo civilizado. Também é moralmente vergonhoso. Nenhum código moral pode justificar a perseguição de um povo em uma tentativa de pôr fim à perseguição de outro. O remédio para a expulsão dos judeus da Alemanha não deve ser buscado na expulsão dos árabes de sua pátria; e também não se conseguirá o alívio da angústia dos judeus às custas da angústia de um povo inocente e pacífico.15

Seria difícil formular o protesto em termos mais claros e moralmente firmes que os de Antonius. Suas palavras datam de 1938 e são, portanto, anteriores à guerra e aos horrores dos fornos crematórios nazistas; precedem, em uma década inteira, a fundação do estado de Israel e a expulsão de 750.000 palestinos de suas terras. Mais de sete décadas depois de enunciadas, elas ainda ecoam em sua atualidade e retidão ética. 

III – A responsabilidade da diplomacia brasileira no Nakba: Oswaldo Aranha

Antes de transferir a questão da Palestina às mãos das Nações Unidas, em fevereiro de 1947, os ingleses apresentaram a proposta de um estado binacional, rejeitada pelos sionistas. Na mitologia oficial israelense, é frequente a referência à rejeição árabe do plano de partição apresentado pela ONU em 1947, mas é muito menos comum qualquer menção à rejeição sionista do plano inglês de um estado binacional. Já antes da transferência da questão à ONU, a liderança sionista tinha bastante claro que a Grã-Bretanha saía da Segunda Guerra Mundial como uma potência de segunda ordem, muito mais interessada, portanto, em abandonar o imbróglio da Palestina que em ajudar a resolvê-lo. Também já estava claro para os sionistas que só restavam os britânicos entre eles e a execução do plano de limpeza étnica, e que a saída britânica da região era iminente. O imperialismo ocidental mais uma vez largava um desastre de sua criação nas mãos de uma população nativa não equipada para resolvê-lo. Qualquer semelhança com o Iraque atual não é mera coincidência.

O Brasil também tem sua responsabilidade histórica no arranjo que produz a catástrofe palestina. Foi Oswaldo Aranha, diplomata brasileiro, quem presidiu as discussões que levariam à fundação do estado de Israel. Até mesmo a hagiográfica biografia de Aranha escrita pelo norte-americano Stanley Hilton dá alguma ideia do que foram as manobras do diplomata brasileiro. Convocado pelo general Dutra em 1947, Aranha seria o representante brasileiro no Conselho de Segurança da recém fundada Organização das Nações Unidas. Depois, seria eleito presidente da sessão especial da Assembleia Geral encarregada de discutir o problema da Palestina. Aranha prometeria aos representantes árabes “plena liberdade de discussão” do tema, logo depois que a Assembleia rejeitara uma proposta árabe para que se incluísse na agenda a questão da independência da Palestina. Não foi o que aconteceu. Ante a observação do Grã Mufti de Jerusalém, de que “os judeus queriam se apoderar da Palestina para sua maior expansão na região”, Aranha retrucou que “a opinião do Mufti não me interessa”16. A recomendação do comitê enviado à Palestina foi favorável ao ponto de vista sionista, ou seja, a partilha, por uma maioria de sete votos (num total de onze). Mas na Asssembleia Geral, vinte países se abstiveram e a recomendação não teve os dois terços necessários. Hilton relata que os últimos dias de novembro foram de crescente tensão, e que apesar das declarações públicas de Aranha, de que não exerceria nenhuma influência, sua atuação nos bastidores era fortemente alinhada com os sionistas, fato reconhecido por Abba Eban, membro da equipe negociadora da Agência Judaica na ONU17.

Quando a liderança sionista percebe que ainda não detinha a maioria, inicia uma manobra pelo adiamento da votação. Aranha “inteirado da situação, usou de sua autoridade para ajudar: quando terminaram alguns discursos protelatórios encomendados, anunciou ‘com irreverência’ que, sendo período de férias nos Estados Unidos, seria justo que a Assembleia o respeitasse e suspendeu a sessão”18. Quando se reabriram os trabalhos, no dia 29 de novembro, eram os árabes que sentiam que haviam perdido terreno. Tentaram adiar o voto. Aranha ignorou uma moção do Irã, que pedia um reexame da questão palestina e um adiamento dos trabalhos para janeiro de 1948. Aranha, que tinha “a mão mais rápida no martelo que já vi”, segundo a expressão de Abba Eban, procedeu a conduzir a votação, que aprovou a partição da Palestina por 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções. Note-se aí, claro, a limitada representatividade da ONU naquele momento anterior à descolonização na África e Ásia. Os árabes, num padrão que se repetiria ao longo do anos, deixaram o espaço livre para os sionistas ao se retirarem do recinto. Chaim Weizmann, que seria o primeiro presidente de Israel, testemunhou a Aranha que “a sessão da Assembleia não poderia ter terminado com esta decisão histórica [...] se não fosse vosso esforço persistente e vossa devoção como presidente”19. 


Musa Kazim al-Husseini, ex-prefeito de Jerusalém, espancado por tropas inglesas.

Em 29 de novembro de 1947, quando a ONU adotou a resolução de partição da Palestina, os árabes representavam dois terços da população da região. Eles eram aproximadamente 90% no início do Mandato Britânico, em 1922. A partição proposta pelo Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina (UNSCOP, pela sigla em inglês) concedia ao terço judeu nada menos que 56% do território, deixando aos dois terços árabes somente 44% da terra. Por pressões do Vaticano e das nações católicas, a resolução da partição reservava à cidade de Jerusalém (de população de 200.000 pessoas, divididas mais ou menos igualmente entre árabes e judeus) a condição de área internacionalmente governada. A divisão demográfica dos dois putativos países era bizarra: no estado árabe, deveriam viver 818.000 palestinos, hospedando 10.000 judeus. No estado judeu, viveriam 438.000 palestinos entre 499.000 judeus. Esse estado detinha a esmagadora maioria das terra férteis e, das 1.200 aldeias palestinas, aproximadamente 400 estavam incluídas em seu interior, sob soberania sionista20. 

Elaborada pelo UNSCOP, cujos membros não sabiam muito sobre a Palestina, a partição se transformaria na Resolução 181 da ONU. Não é de se estranhar que a liderança palestina do momento a rejeitasse. Com o boicote palestino ao UNSCOP, com certeza um erro político grave, a liderança sionista, de ampla superioridade bélica, se viu livre para dominar também o jogo diplomático.

A amarga ironia da história, quando a vemos do ponto de vista árabe, é que, como já argumentou a própria historiografia israelense (Simcha Flapan, por exemplo), se os palestinos tivessem aceitado a partição, a liderança sionista com certeza a teria rejeitado21. Basta examinar as comunicações entre Ben-Gurion e a hierarquia sionista para ver como a rejeição árabe ao plano de partição permitiu ao sionismo aceitá-lo publicamente e ao mesmo tempo trabalhar contra ele. Logo depois da adoção da Resolução 181, Ben-Gurion afirmava ao círculo da liderança sionista que a rejeição árabe ao plano significava que “não há fronteiras territoriais para o futuro estado judeu” e que as fronteiras “serão determinadas pela força e não pela resolução de partição” (p.37). Respondendo a um líder sionista e ministro do exterior (Moshe Sharett) acerca das possibilidades de defender o seu território, Ben-Gurion afirmava: “seremos capazes não só de nos defendermos, mas de infligir golpes letais aos sírios em seu próprio país—e tomar a Palestina como um todo” (p.46). Essas comunicações, disponíveis para consulta nos próprios arquivos israelenses, demonstram claramente que a liderança sionista viu o plano de partição como uma conquista tática, que colocava em definitivo sobre a mesa a legitimidade de um estado judeu na Palestina e estabelecia um trampolim para conquistas posteriores. Essas conquistas, é certo, foram facilitadas pelo perplexo boicote palestino ao Comitê da ONU. Reitere-se, então, que as citações de Ben-Gurion acima são parte de uma ampla documentação que prova que a liderança sionista jogou um jogo duplo e não se comprometeu com a partição como fórmula definitiva. Isso jamais é mencionado pelos apologistas da ocupação de Israel que repetem a consigna de que “os judeus aceitaram a partição de 1947 e os árabes a rejeitaram” como justificativa dos crimes cometidos por Israel em 2010, e bem além dos limites dessa partição.

Antes de descrever a expulsão dos palestinos de suas terras, mais um elemento do xadrez político legado pelo Mandato Britânico deve ser explicado: o acordo sionista-jordaniano que deixa os palestinos sem o apoio do principal exército árabe na Guerra de 1948 e à mercê do superior poder bélico sionista. Aliada dos ingleses na Primeira Guerra Mundial, a família real Hashemita havia recebido os reinos da Jordânia e do Iraque como recompensa por seus serviços. O que passou a ser conhecido como Transjordânia “era um pouco mais que um principado desértico e árido ao leste do Rio Jordão, cheio de tribos beduínas e aldeias circassianas” (p.43). As férteis terras da Palestina situadas a oeste do Rio Jordão, no que hoje é conhecido como Cisjordânia (ou seja, o grosso do território do que é, legalmente, a Palestina atual), passaram a ser objeto da cobiça da família real Hashemita. Havia poucos judeus ali, e entre 1946 e 1947 a realeza jordaniana e a liderança sionista chegaram um acordo: os jordanianos não interfeririam na guerra árabe-israelense que se avizinhava—promessa que os jordanianos cumpriram—e a região da Cisjordânia seria anexada pelo reino dos Hashemitas, sem interferência sionista—promessa que os israelenses quebraram em 1967, ao ocupar o território e mantê-lo sob seu controle, picotagem policial e colonização armada até hoje. Também ali se instalaria um paradigma repetido incontáveis vezes desde 1948. Acuados pelo poder superior dos sionistas, as elites árabes vizinhas rifavam os palestinos, deixando-os entregues à própria sorte num jogo no qual não tinham nenhuma chance. É mais um elemento da tragédia do Oriente Médio.

Revisando os diários de Ben-Gurion e os arquivos israelenses posteriores à partição, o historiador Ilan Pappe encontra certa surpresa e júbilo entre a liderança sionista com o caráter limitado da reação palestina ao recorte de suas terras. Seguindo-se à Resolução 181, os palestinos se limitam a convocar uma greve geral de três dias, durante a qual a repressão inglesa foi duríssima. As revoltas árabes que aconteceram entre 1936 e 1939 deram também à organização paramilitar judia Hagana sua primeira experiência na execução das táticas militares aprendidas com a Grã-Bretanha. A destruição da liderança política palestina seria decisiva para o rumo posterior dos acontecimentos. O quadro que precede a guerra de 1948 é de intenso armamento sionista, coincidindo com um momento de particular fragilidade da liderança palestina, destroçada pela repressão britânica à revolta de 1936-39. No jogo diplomático, começa a pesar a consciência culpada da Europa, em choque com as dimensões gigantescas do Holocausto judeu, recém perpetrado. Quebrar as promessas feitas aos árabes era preço relativamente pequeno para expiar, às custas de outrem, a culpa européia pelo judeocídio. No xadrez político da região, o acordo sionista-jordaniano neutralizava o principal exército árabe. Em pânico com os constantes ataques dos grupos paramilitares judeus (Hagana, Irgun e Stern), a população autóctona, já em 1947, começa a perceber o poderio sionista como uma força imbatível. Estava aberto o caminho para a limpeza étnica da Palestina. 

IV – A preparação da expulsão

Toda sorte de distorções e mitos já foram circulados sobre o que aconteceu na Palestina entre o final de 1947 e o começo de 1949. Na mitologia oficial israelense, no senso comum, no jornalismo mais venal ou preguiçoso, nas Wikipédias e até mesmo em livros embalados como se fossem de pesquisa historiográfica séria, essas distorções foram sedimentando uma coleção de narrativas que recorrem a falsificações não raro contraditórias entre si: 1) que o povo palestino como tal não existia; 2) que ele existia mas que saiu voluntariamente de suas terras em 1948; 3) que não saiu voluntariamente, mas que tampouco foi vítima do sionismo, pois abandonou suas aldeias atendendo a ordens radiofônicas dos próprios árabes; 4) no ramo da pseudo-historiografia sem-vergonha, paga para mentir, já apareceram até livros sobre como os palestinos não eram tão antigos assim na região, já que eles teriam chegado também em imigração recente. Essas diferentes versões da mitologia oficial vão se sucedendo ou se combinando, a gosto do freguês, formando uma geleia geral de enganação empacotada. Acompanham-na algumas frases que, até corretas em si mesmas, omitem um universo de contexto que lhes transforma o sentido, como é o caso de “os sionistas aceitaram a partição proposta pela ONU, os árabes, não”, analisado acima, e “a guerra de 1948 foi iniciada pelos palestinos”, mantra que é essencial em todo mascaramento do processo.


Expulsão em aldeia palestina durante o Nakba.

Como se sabe agora, a liderança militar sionista ficou surpresa com o caráter limitado dos protestos palestinos que se seguiram ao decreto da partição, em novembro de 1947. Afinal de contas, seu território havia sido rachado com uma comunidade minoritária de colonos, que receberam não só um naco de 56% do território, desproporcional à sua representação na população, mas um naco que continha pelo menos 400 aldeias palestinas, nas quais 800.000 palestinos deviam seguir vivendo sob soberania imposta e recém chegada. Ao longo dos dias que se seguem à partição, o comando sionista se reúne para encontrar formas de ataque possíveis, ante a ausência de pretextos. Os arquivos estudados por Ilan Pappe, das reuniões a liderança judaica na Palestina, dão amplo testemunho do planejamento da limpeza étnica. Os fazendeiros dos Kibbutzim transformavam suas cooperativas em postos militares, enquanto nas aldeias palestinas a vida seguia seu curso, no qual a “normalidade era a regra e a agitação a exceção”, segundo os informes do próprio Palti Sela, membro de uma unidade de inteligência sionista. Ao longo do mês de dezembro de 1947, anterior à guerra propriamente dita, as aldeias palestinas sofrem uma campanha de terror e intimidação das organizações paramilitares judias que representam o primeiro capítulo da limpeza étnica da Palestina.

A linguagem da ameaça foi prática comum naquele momento, como mostra o exemplo citado por Ilan Pappe, de panfletos lançados às aldeias sírias e libanesas na fronteira palestina: “Se a guerra for levada até você, ela causará expulsão massiva de aldeões, com suas mulheres e crianças … haverá matança sem piedade, sem compaixão” (p.56). Lembremos que nesse momento o sionismo já possui um mapa completo das aldeias palestinas, incluindo-se informação sobre água, possíveis defesas e indivíduos vinculados à resistência árabe durante os protestos de 1936-39. Esse mapeamento seria chave na destruição das centenas de aldeias palestinas e na expulsão de centenas de milhares de habitantes autóctonos da região No mês de dezembro se disseminam as ações que a Hagana chamava de “reconhecimento violento” (hassiyur ha-alim): invadir uma aldeia à noite, instaurar toque de queda, atirar em qualquer um que ouse sair de casa, permanecer durante algumas horas e ir embora. A aldeia de Deir Ayyub foi uma das vítimas de dezembro de 1947. Com aproximadamente 500 habitantes, ela acabava de comemorar a abertura de uma escola. Foi invadida por tropas judaicas que passaram a atirar indiscriminadamente nas casas. Deir Ayyub ainda seria atacada três vezes antes de ser destruída em sua totalidade em abril de 1948 (p.56). No nordeste da Galileia, na aldeia de Khisas, algumas centenas de muçulmanos coexistiam pacificamente há tempos com uma centena de cristãos. Até que no dia 18 de dezembro de 1947, tropas judaicas a invadiram e passaram a explodir casas durante a noite, provocando a morte de quinze aldeões, pelo menos cinco crianças. Ações como estas proliferaram ao longo de dezembro de 1947, e não costumam ser mencionadas pelos que justificam as atrocidades de Israel com o argumento de que “os palestinos iniciaram a guerra” em janeiro de 1948.


terça-feira, 12 de novembro de 2013

Antes de Hollywood, a URSS

A atuação russa foi a mais decisiva para a derrota da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra. O papel dos americanos foi sobrevalorizado posteriormente, com a Guerra Fria e o fim do regime comunista.


Infantaria soviética em posição de defesa: resistência feroz aos nazistas definiu, mais do que qualquer outro fator, os rumos do conflito.

Decorridos quase 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) não resta mais dúvida entre os historiadores sobre qual das potências participantes do conflito deu a maior e mais importante contribuição para a derrota da Alemanha nazista: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Das 783 divisões de diversos tipos (infantaria, blindada, paraquedista, etc.) que a Alemanha e os países que com ela se aliaram foram capazes de mobilizar, nada menos de 607 (77,5%) foram destruídas pelos soviéticos. Os demais países participantes da coalizão que venceu a guerra (os “Aliados”) foram responsáveis pela destruição das outras 176 divisões (22,5%).

Esses fatos contrastam com a percepção que a maioria das pessoas, mesmo as bem informadas e que mantêm interesse permanente pela história, tem daquele conflito. Para um grande número de membros da audiência dos filmes rodados em Hollywood desde o fim da Segunda Guerra Mundial, foram os Estados Unidos da América (EUA) que mais contribuíram para a der-rota do nazismo. Para essas pessoas, o desembarque na Normandia teria decidido a guerra e promovido o início da libertação da Europa do nazismo. No limite, teriam sido os norte-americanos a matar o próprio Adolf Hitler. No início do século XXI pode-se afirmar que a memória da contribuição ocidental – em especial dos EUA – à vitória na luta contra o nazi-fascismo ofuscou as lembranças afetas à decisiva participação dos soviéticos.

Uma avaliação objetiva da contribuição dos aliados ocidentais (EUA, Grã-Bretanha, etc.) para a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial pode ser feita a partir de diferentes indicadores. No que diz respeito à produção de armas veículos e munições – fundamental para a vitória numa prolongada guerra entre coalizões de países na era industrial –, não pode haver dúvida sobre a importância central dos EUA. Sendo a maior potência industrial do planeta, somente os Estados Unidos poderiam ter alcançado a capacidade de fabricar um navio por dia e um avião a cada cinco minutos, como de fato o fizeram durante quase toda a guerra, abastecendo suas forças e as dos países aliados. A própria URSS recebeu alimentos, matérias-primas, fábricas inteiras, tanques, barcos e aviões dos Aliados. As estimativas sobre a participação dessas doações na composição do total dos efetivos soviéticos variam entre 10 e 15%.

Embora o volume de produção industrial dos EUA fosse superior ao de qualquer outra nação, os demais países aliados também deram contribuições expressivas. No crítico ano de 1942, os Aliados produziram 101.519 aviões, dos quais 47.836 norte-americanos (47,12%), 25.436 soviéticos (25,05%), 23.672 (23,31%) britânicos e 4.575 (4,5%) fornecidos pelos países da Comunidade Britânica. A Alemanha nazista, em contrapartida, produziu apenas 15.409 aparelhos naquele ano. Via de regra, dali por diante, em se tratando das principais armas empregadas naquele conflito (tanques, canhões autopropulsados, artilharia, etc.), a produção alemã seria equivalente apenas à metade do que produziam os soviéticos.

O ano 1943 é considerado como o mais decisivo para o desfecho da guerra, por conta das decisivas batalhas que foram travadas na frente russa: a rendição final das tropas alemãs cercadas em Stalingrado (2 de fevereiro) e a Batalha de Kursk, o maior combate de tanques da história (4 a 22 de julho). A essas batalhas tidas como definidoras, sob todos aspectos, devem-se acrescentar as importantes operações militares desenvolvidas pelos russos que culminaram na libertação da maior parte do território da URSS, o fim do prolongado cerco de Leningrado pelos nazistas (de 8 de setembro de 1941 a 27 de janeiro de 1944) e a destruição de tropas alemãs em escala maciça. Foi também em 1943 que americanos, com apoio dos britânicos, invadiram a Europa ocupada pelos nazistas pela primeira vez, com o início da campanha da Itália.

Ainda assim era na frente russa que a Alemanha nazista mantinha a grande maioria dos seus efetivos todo o tempo. Em 1943, havia pouco mais de 4 milhões de militares alemães e 283 mil soldados de países aliados da Alemanha combatendo 5,5 milhões de militares soviéticos. Na mesma época, havia outros 3 milhões de soldados alemães em tropas de ocupação na Europa, onde havia diferentes graus de resistência armada ao domínio nazista. A outra frente de combate aberta contra a Alemanha nazista foi a invasão anglo-americana da Itália. A península italiana apresentava características geográficas e climáticas que muito dificultavam o avanço aliado. Ali, os alemães foram capazes de oferecer uma resistência extremamente eficaz ao avanço inimigo, destinando à defesa da região àquela época apenas 412 mil soldados.

Tão pequena foi a contribuição da campanha italiana à derrota nazista que até mesmo os historiadores anglo-britânicos se recusam a se referir a esse teatro de operações como sendo a abertura de uma “segunda frente”. Para os fins práticos, a tão aguardada abertura de uma segunda frente de luta contra o nazismo foi mesmo o desembarque aliado na Normandia, em 6 de junho de 1944. Mas, mesmo os Aliados tendo desembarcado forças consideráveis na França ocupada pelos nazistas, o front principal continuava a ser o russo. Na França, os Aliados enfrentavam cerca de 58 divisões alemãs de diversos tipos, enquanto que os russos se confrontavam com 179 divisões alemãs e outras 49 de países aliados dela.

A tão propalada campanha aérea de bombardeios anglo-americanos contra o Terceiro Reich deu resultados muito menores do que os estimados na época. Embora tenham conseguido infligir considerável sofrimento humano à população alemã (600 mil civis alemães foram mortos em ataques aéreos dos Aliados, ou seja, dez vezes o número de cidadãos britânicos mortos em bombardeios aéreos alemães), o regime nazista conseguiu manter e até ampliar sua produção de material bélico. De fato, o auge da produção alemã de tanques e aviões, por exemplo, se dá em 1944 – justamente quando a campanha de bombardeios atingia o seu ápice em intensidade e eficácia. Onde os bombardeios ditos “estratégicos” que britânicos e americanos praticavam contra a Alemanha nazista deu algum resultado foi na in-versão de prioridades da indústria de armamentos alemã. Na fase final da guerra, nada menos de um terço da produção armamentista do Terceiro Reich era composta de armas e aeronaves dedicadas à defesa antiaérea (aviões de caça, canhões antiaéreos), em vez de armas ofensivas (tanques, aviões de bombardeio, etc) que permitissem à Alemanha retomar a iniciativa contra seus inimigos.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Como pensavam os kamikazes

Nem fanáticos, nem voluntários - os jovens pilotos suicidas japoneses foram vítimas da hierarquia militar e de um projeto tão ousado quanto estúpido para tentar reverter uma invasão que não chegou a acontecer.


Após quase quatro horas no ar, a pequena esquadrilha de cinco Mitsubishi A6M Zero avistou navios norte-americanos próximos à Ilha de Samar, nas Filipinas. Pelo rádio, o tenente Yukio Seki anunciou aos oficiais em terra: "Melhor morrer que viver como um covarde". Os aviões se dividiram em direção aos navios, descendo a até poucos metros acima do mar para evitar o fogo antiaéreo. Seki e outro piloto tentaram um ataque ao porta-aviões USS White Plains. Atingidos, o parceiro caiu no mar e o líder saiu soltando fumaça, desviando rumo ao USS St. Lo, outro porta-aviões. Eram 10h47 de 25 de outubro de 1944 quando o avião de Seki se desintegrou no convés do St. Lo. O caos tomou conta: uma série de explosões estremeceu o navio de 156 m. Os feridos foram primeiro baixados com cordas ao mar, depois simplesmente atirados do convés. Em 30 minutos, o incêndio atingiu o paiol principal e o porta-aviões sofreu uma explosão catastrófica, indo a pique. Ao preço de um piloto japonês, morreram 140 americanos.


Nem pelo Japão, nem pelo Imperador.

Nove dias antes, o vice-almirante Takijiro Onishi, velho aviador naval que havia se oposto ao ataque a Pearl Harbor, convocou uma reunião de oficiais. Como comandante da Primeira Frota Aérea da Marinha Imperial Japonesa, anunciou seus planos de defesa: "Só existe uma forma como nossa força minúscula será eficiente num grau máximo. É organizar unidades de ataque suicida compostas de caças A6M Zero armados com bombas de 250 kg, com cada avião devendo colidir num mergulho contra um porta-aviões inimigo... O que vocês acham?"

Os militares conheciam bem a gravidade da situação. Na Batalha do Mar das Filipinas pela posse das Ilhas Marianas, em apenas dois dias, 19 e 20 de junho de 1944, os japoneses perderam cerca de 600 aviões, num episódio que ficou conhecido entre os pilotos americanos pelo sarcástico título de Great Marianas Turkey Shoot, a "Grande Caçada ao Peru das Marianas". Quando os japoneses começaram a guerra em Pearl Harbor, em dezembro de 1941, os Mitsubishi AM6 Zero eram um grande desafio aos norte-americanos, por serem mais ágeis e manobráveis. A introdução do F6F Hellcat, em 1943, muito superior ao Zero ou qualquer outro avião japonês, além do uso de radar, novidades táticas e simples vantagem numérica, fruto de uma indústria intacta, destruíram qualquer chance de os japoneses disputarem o domínio aéreo dos EUA. Na Batalha de Formosa, entre 10 e 20 de outubro de 1944, os japoneses perderam mais 500 aviões. "Quando Onishi chegou às Filipinas, descobriu que tinha menos de 100 aviões operacionais", afirma David Sears em At War with the Wind (sem tradução). Sears descreveu o que se passou a seguir na reunião: "Ali estava a oportunidade de apagar a vergonha. Sacrificar um piloto e um avião pela destruição de um navio com uma equipe de 3 mil homens e mais de 50 aviões. Ainda que o estado de espírito entre a plateia de Onishi provavelmente variasse entre entusiasmo feroz, resignação estoica e puro terror, os que finalmente falaram pediram para organizar as forças eles mesmos". Os oficiais fizeram os preparativos, mas nenhum foi voluntário. Coube ao tenente Seki, um instrutor de voo, liderar o primeiro ataque. Daí a provocação em suas palavras: seus superiores eram os covardes que ficaram vivos.

Não foi a única rebeldia do primeiro kamikaze. O tenente foi entrevistado pelo jornalista Onoda Masahi, em preparação para a avalanche de propaganda oficial que se seguiria. Masahi planejava incluir em seu texto o lado humano dos pilotos, e conseguiu: "Se é uma ordem, eu vou. Mas não irei morrer pelo imperador ou pelo Império Japonês. Vou morrer por minha amada esposa. Se o Japão perder, ela pode acabar estuprada pelos norte-americanos. Estou morrendo por quem mais amo, para protegê-la", afirmou Seki, que foi além. "O futuro do Japão é sombrio quando se é obrigado a matar um de seus melhores pilotos." Obviamente, nada disso foi publicado pela imprensa japonesa. O tenente e o resto de sua esquadrilha ganharam placas comemorativas no santuário de Yasukini, o que os tornava, dentro do xintoísmo oficial do Estado, espíritos guardiães da pátria, semideuses honrados pela visita do imperador duas vezes por ano - assim como todos os outros 3 843 pilotos que se seguiriam a eles. Não há consenso sobre o número exato de pilotos suicidas, estes são de Kyomi Morioka, da Universidade de Tóquio. O santuário lista 5 843.


A cultura da morte e seus descontentes

O bushidô, o caminho do samurai, sempre foi um componente importante da cultura japonesa, codificado em clássicos do Período Tokugawa (1603-1867) como Hagakure, de Yamamoto Tsunemono e O Livro dos Cinco Anéis, de Miyamoto Musashi. Mas seus ensinamentos se destinavam, um tanto obviamente, aos samurais - categoria que foi extinta no início da Era Meiji (1868-1912). Em 1899, o economista, diplomata e escritor Inazo Nitobe lançou, em inglês, Bushido: The Soul of Japan (sem tradução no Brasil). Destinado a apresentar o Japão ao mundo, quando traduzido para o japonês tornou-se a maior expressão do novo regime. Nitobe, cristão que havia estudado nos EUA, transformou o que eram ideais de uma classe guerreira na ideologia de um Estado militarista, que assumiria feições claramente fascistas nos anos 20.

É de imaginar que Seki não gostaria de saber que sua imagem destemida, reproduzida em inúmeros artigos de jornal e peças de propaganda, serviria para promover tal ideologia, a senha para o suicídio de milhares de compatriotas. Muitos kamikazes eram adeptos convictos do culto à morte promovido pelo Estado. Mas a relutância irreverente de Seki estava longe de ser raridade. Em entrevista a AVENTURAS NA HISTÓRIA, em 2008, o sobrevivente Tokio Mao mostrou suas próprias razões: "Não, nada de glória ao imperador. Era acabar com a guerra. E ter uma morte com honra!" Os diários desses pilotos, mais vítimas que algozes do Império, revela personalidades muito mais complexas, perturbadas pela ideia de morte. Alguns eram inimigos declarados do sistema político do Japão.

A imagem dos kamikazes no Ocidente, um bando de fanáticos se matando pelo seu deus-imperador, que frequentemente é comparada aos homens-bomba islâmicos contemporâneos, é fruto de uma "parceria" entre a propaganda japonesa e a imprensa ocidental. Os japoneses da época recebiam apenas as partes "construtivas" dos relatos kamikazes, geralmente seus testamentos, escritos para serem lidos por autoridades após a morte - que contêm loas ao imperador, ao yamato damashii (o espírito japonês), e poesias de morte mencionando a sakura, a flor de cerejeira, o símbolo nacional cujas pétalas, que caem em poucos dias, significavam a fragilidade da vida do soldado - um sentido em grande parte construído pelo Estado, segundo a antropóloga Emiko Ohnuki-Tierney, da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), autora de livros sobre os kamikazes. Ela rejeita a comparação com os homens-bomba islâmicos. "Os kamikazes eram soldados de uma nação em guerra, não indivíduos. Eram recrutados, não voluntários, que recebiam ordens para morrer. E nunca foram usados contra alvos civis."

Do outro lado do Pacífico, a imprensa dos EUA trouxe os primeiros relatos dos kamikazes em abril de 1945, após meses de censura pelos militares. Os jornalistas não só inflaram a imagem de fanatismo como, de certa forma, criaram a expressão. O nome das unidades era tokubetsu kõgekitai (unidade de ataque especial), geralmente abreviado para tokkõtai. As unidades da marinha ganhavam o nome de shinpu tokubetsu kõgekitai. Shinpu quer dizer "vento divino", as tempestades que salvaram os japoneses da invasão mongol duas vezes, em 1274 e 1281 - a Marinha japonesa acreditava que os pilotos suicidas salvariam o país dos novos mongóis, os norte-americanos, bárbaros sem cultura que acabariam com o país, tornando o sacrifício uma questão mais de morrer antes, de forma gloriosa, que depois, acuado dentro das próprias fronteiras. "Kamikaze" é a leitura em japonês popular dos mesmos ideogramas, que não era usada pelos japoneses, mas pelos militares americanos. A imprensa ocidental tornou o termo tão popular que hoje ele é usado no Japão.


Um passo adiante

A imensa maioria dos kamikazes era formada por estudantes, recrutados de universidades antes do início da ação, principalmente a partir de dezembro de 1943, quando 6 mil foram removidos das salas de aula em apenas três dias. Antes ou depois do início do programa, ninguém era convocado para se suicidar. A posição oficial do governo japonês era que todos os kamikazes eram voluntários. "A operação tokkõtai era uma garantia de morte e o alto oficialato japonês, hipocritamente, decidiu não torná-la um programa oficial da Marinha ou Exército, onde ordens eram dadas em nome do imperador", escreveu Emiko em Kamikaze, Cherry Blossoms and Nationalism. Mesmo para quem se voluntariava, a decisão estava longe de ser uma alternativa totalmente livre.

O treinamento era brutal. A tropa apanhava por qualquer motivo. Para "formar o caráter" ou simplesmente por causa da inveja dos sargentos, que consideravam os soldados universitários filhinhos de papai. Entre as razões para apanhar estava não saber recitar o Decreto Imperial ao Soldado, que terminava com palavras sombrias: "Entendam que a obrigação é mais pesada que as montanhas, mas a morte é mais leve que uma pluma". Segundo o relato do historiador e sobrevivente Irokawa Daikichi, no Ano-Novo de 1945, ele não conseguiu sentir o gosto do zoni, a sopa de bolinhos de arroz com que os japoneses costumam comemorar a passagem - porque só percebia o gosto de sangue na própria boca. "Batiam em meu rosto tão forte e frequentemente que meu rosto não era mais reconhecível."

Finalmente, com o espírito quebrado, chegava o dia de se "voluntariar". Os soldados eram chamados a uma sala onde ouviam um discurso patriótico sobre o valor de se sacrifícar pelo imperador. Então eram postos de pé e pedia-se aos voluntários para darem um passo a frente. Raramente alguém desafiava as pressões da autoridade, da ideologia martelada em suas mentes desde a infância e a culpa de continuarem vivos enquanto seus companheiros iam para a morte. O estudante Kenjiro Kuroda se recusou, apenas para ver seu nome publicado na lista de voluntários no dia seguinte, enquanto seu oficial se gabava que todos em sua companhia haviam se candidatado. O cristão Ryu Yamada relatou que foi simplesmente forçado, o que ele considerou um assassinato. E isso não era incomum. "Muitos pilotos kamikazes, tanto no Exército quanto na Marinha, eram apontados como membros de esquadrões suicidas sem sequer ter a chance de se tornarem voluntários. Desses jovens, se esperava que seguissem tais ordens como qualquer outra", afirma o historiador William Gordon, da Universidade Wesleyan (EUA).


A vida dos mortos

Quando o piloto era designado para um grupo tokkõtai, recebia um breve treinamento específico. Ele devia saber quais partes dos navios atingir, principalmente os porta-aviões, os alvos prioritários. A instrução mais importante era para não fechar os olhos na hora de mergulhar - muitos kamikazes atingiam a água ao ceder ao instinto. Depois disso, eram meses de espera até que chegasse o momento do voo fatal.

Ainda que a propaganda japonesa mostrasse os pilotos sempre serenos e sorridentes em seus momentos finais, a verdade tinha uma face bem mais humana (veja os depoimentos ao longo desta reportagem). Os pilotos frequentemente caíam em depressão e lutavam internamente para racionalizar suas decisões.

Quando chegava o dia do voo para a morte, os pilotos ganhavam um brinde de saquê, amarravam a hachimaki (faixa) na cabeça, e talvez também o senninbari, um cinto costurado por mil mulheres, cada uma dando um ponto - espécie de amuleto de "corpo fechado" do soldado japonês. Levavam ainda a bandeira japonesa, uma espada e uma pistola - para o caso de falharem e terem de evitar a captura com o suicídio. Se estivesse na época da florada, carregavam ramos de cerejeira. E escreviam poesias, seguindo o exemplo dos samurais condenados a cometer seppuku, o suicídio honroso.

E então decolavam. A maioria pilotava seu próprio Zero, carregado com uma única bomba de 250 kg. Mas foram usados outros modelos de aviões, inclusive bombardeiros com a tripulação completa, além de torpedos tripulados, os kaiten. Nunca era uma viagem tranquila e sem escalas direto para a morte. Assim que detectavam os japoneses no radar, caças norte-americanos partiam dos porta-aviões, mais rápidos, bem armados e em maior número. Os kamikazes até podiam tentar lutar e às vezes contavam com a escolta de caças regulares. Mas, em geral, o melhor que podiam esperar é que o avião resistisse o suficiente para explodir no convés do navio inimigo.

Os japoneses tinham outras cartas. Em 12 de abril de 1945, o destróier Mannert L. Abele estava acompanhado por dois navios de transporte a 130 km a noroeste de Okinawa. Sua função era patrulhar o oceano por radar, justamente para impedir ataques de pilotos kamikazes. No começo da tarde, acabou cercado por aviões japoneses e destruiu quatro que tentaram investir contra ele. Às 14h40, enquanto as baterias estavam distraídas com a última investida kamikaze, um estranho objeto apareceu no céu e mergulhou contra o Mannert, acelerando de forma inimaginável.


Vítimas do sucesso

As baterias antiaéreas simplesmente não conseguiram acompanhar o movimento do bólido, que penetrou na câmara do motor e explodiu, matando a equipe e fazendo o destróier perder o controle de todos os seus sistemas, inclusive o dos armamentos. Um minuto depois, outro objeto idêntico atingiu o navio no casco lateral, partindo-o o em dois e levando ao fundo do oceano a maior parte de sua tripulação.

O Mannert L. Abele foi a primeira vítima do Yokosuka MXY7 Ohka, a tecnologia mais avançada das forças kamikazes. Era uma bomba voadora pilotada, movida a foguete, lançada de bombardeiros Mitsubishi G4M. Podia chegar a 1 040 km/h, levando uma carga explosiva de 1,2 mil kg, quase cinco vezes mais que um kamikaze convencional. O Ohka era impossível de ser interceptado, mas estava longe de ser uma arma milagrosa. A pesada e frágil "nave-mãe" tinha que chegar perto do alvo, já que o Ohka só tinha autonomia para 36 km de voo. Um piloto tinha mais chances de morrer ainda preso nas asas do bombardeiro ou, pior, ser lançado longe demais do alvo, para um voo curto e inútil rumo à morte solitária no oceano. Assim, apenas três outros navios partilhariam o destino do Mannert L. Abele.

Não que os pilotos de aviões convencionais tivessem uma chance muito melhor. As ações nas Filipinas, quando os Estados Unidos ainda não estavam preparados para os ataques, teve apenas 20,8% de acertos - 41% dos aviões suicidas deram meia-volta por falta de combustível, tempo ruim ou simplesmente por não encontrar o inimigo. Em toda a guerra, 11,6% dos 3,3 mil aviões kamikazes acertaram seus alvos, contra 27,5% que voltaram à base. Os kamikazes que retornavam sofriam humilhação dos oficiais, com a habitual violência física, até voar para a morte novamente um outro dia - o fato explica o "mistério" por que usavam capacete e por que é absurda a lenda que afirma que eram fechados com solda na cabine do avião.

Durante toda a guerra, 47 navios norte-americanos foram afundados, pela estimativa do historiador William Gordon. Apenas três deles eram porta-aviões, todos de escolta, relativamente pequenos, desprotegidos e desimportantes. Segundo dados da Força Aérea dos Estados Unidos, 4,9 mil marinheiros foram mortos pelos kamikazes e outros 4,8 mil, feridos.

Os efeitos da campanha são bastante discutíveis. "Acredito que os ataques kamikazes fizeram a maioria dos norte-americanos mais determinada a derrotar o Japão. Especialmente durante a Batalha de Okinawa, alguns poucos marinheiros sofreram mentalmente pelos contínuos ataques suicidas contra navios dos EUA, dia após dia, mas quase todo o pessoal da Marinha tinha moral alta para continuar a derrubar aviões japoneses não importasse quantos fossem enviados", diz Gordon.

A partir de julho de 1945, a intensidade das ações kamikazes diminuiu. Os japoneses começaram a se preparar para a invasão americana, e sua principal arma seriam contra-ataques suicidas. Eles esperavam afundar 400 navios em caso de aproximação - algo não totalmente infundado, já que partiriam de uma distância muito mais próxima, e os últimos modelos do Ohka, movidos a jato em vez de foguete, podiam decolar de terra e tinham maior autonomia.

Mas a invasão nunca ocorreu. Em 26 de julho, os Estados Unidos, Grã-Bretanha e China lançaram a Declaração de Potsdam, ameaçando o Japão de "completa e total destruição" caso não se rendesse. E mostraram o que queriam dizer em 6 de agosto, quando três bombardeiros B-29 cruzaram céus desimpedidos, já que quase todos os aviões japoneses estavam reservados para a ação kamikaze. E assim Hiroshima viveu a maior ação de terror já vista na história. Três dias depois, o mesmo ocorreu em Nagasaki.

A campanha kamikaze tornou o Japão a "vítima ideal" para a bomba atômica. "Os americanos não podiam acreditar que os pilotos japoneses se matavam para destruí-los. Isso deu a eles a crença que os inescrutáveis japoneses não se renderiam até o último cair morto, dando a `desculpa¿ para as bombas atômicas, o que é bem documentado", afirma Emiko Ohnuki-Tierney. "A decisão do presidente Harry Truman de lançar as bombas atômicas me parece adequada por causa das perdas que os japoneses, especialmente por aviões kamikazes e outras armas suicidas, infligiriam aos aliados se tentassem invadir o Japão", diz Bill Gordon.

Em 15 de agosto, o imperador Hirohito anunciou a rendição. Ao ouvir a notícia, o almirante Matome Ugaki vestiu um uniforme sem insígnias e decolou num Yokosuka D4Y. Pelo rádio, transmitiu seu último recado. "Farei um ataque em Okinawa, onde meus homens caíram como flores de cerejeira. Lá irei colidir meu avião e destruir o inimigo arrogante, no verdadeiro espírito do bushido, com firme convicção e fé na eternidade do Japão Imperial. Confio que os membros de todas as unidades sob meu comando irão superar todas as dificuldades do futuro e prosperar na reconstrução de nossa grande pátria, que ela viva para sempre. Longa vida ao imperador!" Ugaki foi encontrado no dia seguinte, nos destroços de seu avião numa praia. É provável que o último kamikaze tenha sido abatido sem atingir seu alvo. No dia seguinte, o inventor da operação kamikaze, Takijiro Onishi, cometeu seppuku. Em sua carta de suicídio, pediu desculpas a todos os quase 4 mil japoneses que se mataram em vão.


Hachiro Sasaki, o marxista: 23 anos, 14 de abril de 1945.

Formado em economia pela Universidade de Tóquio, Sasaki acreditava que a guerra se justificava por ser contra os Estados Unidos e Inglaterra, sedes do capitalismo. Antes de sua última missão, ganhou o privilégio de visitar os pais, mas não contou a eles que havia se voluntariado para uma missão suicida. Como todos os pais de pilotos kamikazes, dias depois eles receberam uma caixa vazia contendo um papel com o nome do filho, e nada mais - os "restos mortais".

"De certa forma, não consigo ficar eufórico com as notícias das vitórias japonesas. Eu sinto ansiedade. Queria saber o que acontecerá ao capitalismo após a guerra. (...) O poder do velho capitalismo é algo do qual não podemos nos livrar facilmente, mas se ele pode ser esmagado pela derrota na guerra, transformaremos um desastre em algo positivo. (...) Lembro-me que os trabalhadores ficam desencorajados ao perceber como os chefes os exploram. Sinto-me tolo por me orgulhar de meu talento como piloto. Os que escaparam por não se qualificarem devem ser os realmente inteligentes."


Ichizo Hayashi, o cristão: 23 anos, 12 de abril de 1945