Imagem estilizada da capa da Edição em inglês do Livro Deus é vermelho (God is Red: HarperOne, and Imprint of HarperCollinsPublishers).
Liao
Yiwu é o escritor contemporâneo mais censurado hoje na China. Seu poema épico “Massacre”,
composto em 1989 em condenação à sangrenta repressão do governo na Praça da Paz
Celestial (ou Praça de Tiananmen), levou a quatro anos dee prisão. Seu livro The Corpse Walker: Real Lifes Stories,
China from the Bottom Up (O Cadáver andarilho: histórias da vida real, a China
de baixo para cima), de 2008, que narra a vida dos marginalizados da
sociedade comunist, permanece proibido no país. Os líderes chineses consideram
seus textos subversivos, pois são críticos do sistema socialista.
Apesar
do ambiente adverso na terra natal, Liao não se abala e continua a soltar as
rédeas da curiosidade. Em God in China
(Deus na China), ele direciona a atenção para uma área há anos escondida do
Ocidente, e que permance um assunto de imensa controvérsia: o ressurgimento do
cristianismo na China. O centro de estudos World Christian Database estima a
existência de setenta milhões de cristãos praticantes no pís, ou 5% da
população total. Numa sociedade abertamente ateia, o cristianismo é a maior
religião formal da China.
O
número, sem dúvida, surpreederá muitos ocidentais, mais inclinados a associar a
China aos budistas e taoístas queimadorres de incenso, ou aos pragmáticos
confucionistas, ou aos comunistas ateus ambivalentes, empunhado bandeiras
vermelhas e convertidos espiritualmente ao consumismo.
O
cristianismo ingressou na China no início do século VII. Embora os intercâmbios
científicos envolvendo jesuítas nma corte de Kublai Khan estejam bem
documentados, a religião não se enraizou de forma sólida até o século XIX,
quando melhorias no transporte e acesso ao interior possibilitaram o trabalho
de ondas de missionários europeus no Império do Centro. Antes da tomada do
poder pelos comunistas em 1949, a liderança cristã local, formada no exterior
ou tutelada pelos missionários, acelerou o crescimento da religião entre os
nativos. Segundo a China Soul for Christ Foundation (Fundação Alma da China
para Cristo), o número de adeptos chegava a setecentos mil quando os
missionários estrangeiros forma expulsos após a tomada comunista, em 1949.
Antes
da morte de Mao Tsé-tung, em 1976, muitos cristãos chineses foram presos ou
executados. Nos últimos anos, com o afrouxamento do controle governamental
sobre a religião, o cristianismo experimentou um crescimento explosivo, embora
o Partido Comunista procure fiscalizar o movimento cristão, exigindo que todas
as igrejas pertençam também ao
Movimento Patriótico das Três Autonomias ou à Associação Católica Patriótica Chinesa.
Movimento Patriótico das Três Autonomias ou à Associação Católica Patriótica Chinesa.
Em
2007, o jornal oficial China Daily informou que havia uma estimativa de
qurarenta milhões de protestantes professos e cerca de dez milhões de católicos
– Pequim considera os católicos à parte da corrente principal do cristianismo –
China. Enquanto um elevado número de chineses optou por reconhecer a realidade
política e praticar a religião dentro dos limites prescritos pelo governo,
outros resistiram, acreditando que somente Deus, não o partido, poderia
reivindicar suas crenças. Eles evitaram as igrejas
“oficiais” e se reuniram para cultos nas casas – o chamado “movimento das igrejas domésticas” –
apesar da perseguição permanente por parte das autoridades governamentais. O
movimento tem ganhado impulso.
O
interesse de Liao no cristianismo começou em julho de 1998, quando visitava um
amigo em Pequim e encontrou Xu Yonghai, um neurologist que se tornou pastor
numa igreja protestante clandestina. Pela primeira vez, Liao entrou em contato
com um cristão chinês. O encontro é descrito num relato chamado “A visita
secreta”:
(...)
com os fragmentos de conversa que pude reunir, deduzi que planejavam imprimir
alguns materias proibidos. Yonghai estava tenso e, quase de minuto em minuto,
erguia a cabeça furtivamente e olhava para fora a fim de ver se havia alguém
lá. Aparentemente eles haviam terminado suas atividades quando Yonghai se
aproximou de mim e sussurrou: “Temos de ser cuidadosos. Acho que a casa de
Wenli está grampeada.” Assenti com a cabeça, reconhecendo sua cautela.
Ele
queria a ajuda de Xu com uma publicação para os membros das igrejas domésticas
de Pequim e, com entusiasmo, falou sobre o conceito de salvação por intermédio
de Deus. Eu sabia pouco sobre o cristianismo na época e estava interessado no
que ele tinha da dizer, mas no fundo rejeitei seu proselistismo. Por fim, eu
disse:
__Eu
não vou a igreja.
Ele
riu:
__Eu
também não vou à igreja...Elas são todas controladas pelo governo.
Tendo
crescido sob o regime de Mao, quando as práticas religiosas foram banidas e o
comunismo foi tratado como uma religião nacional com Mao no centro, deificado e
adorado, Liao permaneceu cético em relação a qualquer forma de religião. Ele possuia
conhecimento escasso do cristianismo, há tempos demonizado pelo governo como “ópio
espiritual” trazido pelos imperialistas estrangeiros. No entanto, para um
escritor que entrara e saíra da cadeia por seus textos críticos contra o
governo, Liao tinha firmes convicções a respeito da liberdade de expressão e da
liberdade religiosa. Ele não partilhava da fé de Yu, mas admirou sua coragem.
Após
retornar a sua cidade natal na província de Sichuan, Liao começou a pesquisar a
fé cristã na China e aprendeu sobre o movimento cristão clandestino, do qual Xu
Yonghai estava na vanguarda.
Liao
manteve contato com Xu e se envolveu em longas conversas com ele sobre política
e fé até o início de 2004, quando o telefone de Xu foi desligado. Xu havia sido
preso durante uma pregação numa casa particular na província de Zhejiang, no
sudeste do país, e foi condenado a três anos de cadeis.
A
prisão de Xu despertou o interesse de Liao nas questões cristãs. Quando voltou
a Pequim em 2005, seu amigo Yu Jie, escritor e notório ativista cristão,
presenteou-o com a cópia de um documentário produzido por Yuan Zhiming, The Cross: Jesus in China (A Cruz: Jesus na
China). O filme narra a história e o crescimento do cristianismo na China e
lança alguma luz sobre os primeiros mártires cristãos e os crentes individuais
que integram o “movimento das igrejas
domésticas” na China de hoje. A experiência de assistir às extensas imagens
das grandes reuniões cristãs foi um abrir de olhos para Liao, e ele se sentiu
compelido a incluir os cristãos em um projeto mais amplo sobre as pessoas que
vivem à margem da atual sociedade chinesa.
Uma
oportunidade surgiu em dezembro de 2004, quando Liao, fugindo de agentes do
governo que haviam invadido seu apartamento enquanto ele entrevistava membros
da Falun Gong (é uma fé com base nas crenças budistas e taoístas), um grupo
semireligioso ilegal, escondeu-se na província de Yunnan. Em Lijang, encontrou
um médico chinês cristão, identificado somente pelo nome de família, Sun, que
desistiu de uma prática lucartaiva na cidade para realizar trabalho missionário
nas regiões remotas e montanhosas do sudoeste da China. Como o território de
Sun cobria uma extensa área de regiões minoritárias, onde atuaram os primeiros
missionários cristãos da Europa e da América, Liao pediu para juntar-se a Sun
numa jornada de um mês, que o levou a aldeias com grandes populações deos povos
miao e yin, dois dos maiores grupos étnicos do país.
Nesses
enclaves étnicos, empobrecidos pelo isolamento e um tanto negligenciados pela
modernização, Liao deparou com uma vibrante comunidade cristã que havia se
originado do trabalho de missionários ocidentais no fim do século XIX e início
do século XX. Liao obteve acesso raro para um forasteiro.
Liao
entrevistou cristãos numa igreja branca e luminosa, “posicionada orgulhosamente
entre os picos das montanhas, com uma cruz vermelha exibida com destaque na
parte superior do campanário”. Ele presenciou uma reunião de oração num pátio
abarrotado, onde “animais e humanos viviam lado a lado, compondo um quandro
harmonioso”. Nos cultos celebrados como festivais, Liao ouviu aldeões
analfabetos expressarem com eloquência seu amor a Deus.
Muitos
dos entrevistados por Liao nunca haviam se aberto para um forasteiro. Eles
partilharam histórias sobre estrangeiros “altos e loiros ou ruivos”, que
salvaram as aldeias durante a devastadora terceira pandemia de peste bubônica
que assolou a China e grande parte do mundo no início do século XX. Contaram
sobre como os estrangeiros promoveram a saúde pública e ensinaram os moradores
a proteger o suprimento de água; como espalharam a alfabetização ao construir
escolas; como aprimoraram a saúde por
meio de seus hospitais; e como salvaram bebês e crianças abandonadas pelos pais
por causa da pobreza. Os aldeões também se abriram a Liao e falaram sobre a
repressão brutal e a perseguição a notórios líderes cristãos na era Mao, incluindo
a trágica e heroica história do
reverendo
Wang Zhiming, ministro protestante executado durante a revolução Cultural e honrado pela Abadia de Westminster, com uma estátua acima de sua entrada a oeste, como um dos dez mártires cristãos do século XX.
Wang Zhiming, ministro protestante executado durante a revolução Cultural e honrado pela Abadia de Westminster, com uma estátua acima de sua entrada a oeste, como um dos dez mártires cristãos do século XX.
Liao
se emocionou com opoder de sustentação da fé e com o espírito otimista entre as
congregações que encontrou. Por exemplo, após recontar a trágica história do
reverendo Wang Zhiming, seu filho, reverendo Wang Zisheng disse a Liao: “Não
sinto amargura. Como cristãos, devemos perdoar o pecador e seguir adiante. Somos
gratos pelo que temos hoje. Há tanto que fazer. (...) Em nossa sociedade atual,
a mente das pessoas está confusa e caótica. Elas precisam das palavras do
evangelho mais do que em qualquer outra época”.
Nas
cidades, Liao presenciou as tensões políticas entre as igrejas sancionadas pelo
governo e as igrejas domésticas não registradas, mas se sentiu reanimado pela
abordagem mais liberal por parte das autoridades governamentais quanto à
religião na área rural. Os moradores dos vilarejos tratavam política e religião
de maneira mais pragmática. Ainda que tivessem sido batizados numa das igrejas
patrióticas das Três Autonomias do governo, não sentiam desconforto em ouvir e
orar com os líderes das igrejas domésticas. “A figura santa na cruz sobre o púlpito é
o meu Senhor, seja acima do púlpito numa igreja governamental ou dentro de uma
sala de estar”, disse um jovem de 24 anos a Liao. Além disso, Liao
descobriu ser comum para as famílias exibir um retrato do presidente Mao numa
parede e uma imagem de Jesus em outra.
No
final da primavera de 2009, Liao e eu começamos a discutir a possibilidade de
desenvolver um livro baseado em suas experiências na província de Yunnan. Ele queria
explorar a questão mais ampla da espiritualidade na China na era pós-Mao,
quando a perda generalizada da fé no comunismo, assim como a corrupção
desenfreada e a ganância resultantes da tendência inexorável do país para a
modernização, criaram uma crise de fé. Embora Deus é vermelho utilize o
cristianismo como tema, seu objetivo é aprofundar as experiências passadas e
presentes de determidado grupo de pessoas em busca de indícios sobre o futuro
da China.
No
verão de 2009, Liao retornou a Yunnan e permaneceu um mês na parte antiga de
Dali, uma cidade famosa por suas diversas e robustas culturas religiosas. Ali
ele conduziu uma série de novas entrevistas para expandir o escopo de seu
conhecimento. Visitou as duas igrejas mais antigas da cidade, construídas por
missionários ocidentais do início do século XX, e localizou ativistas e líderes
cristãos locais para registrar a história de vida deles.
Algumas
histórias, embora únicas e pitorescas, tipificam as experiências de cristãos
chineses comuns e evidenciam as controvérsias políticas e sociais que envolvem
e, por vezes, ofuscam a questão da fé cristã na China de hoje. Outros testemunhos capturam os anos
sombrios da era Mao, quando as garras da perseguição política não deixaram
nenhum local intacto na China e quando milhares de cristãos, além de
inumeráveis outros, foram torturados e assassinados. Mais importante, cada
história coloca um rosto humano sobre as batalhas políticas históricas e
contínuas, encenadas por pessoas comuns contra o que ainda é um Estado policial.
Liao
iniciou o projeto como um forasteiro – um escritor urbano, não cristão, da
etnia majoritária han – empurrado para uma multidão de componeses cristãos das
etnias rurais miao, yi e bai, cuja linguagem, tradições culturais e fé lhe eram
estranhas. Por vezes, Liao se sentiu perdido e confuso. No fim da jornada, a
hospitalidade, honestidade e sinceridade dos aldeões, sua busca objetiva pela
fé, assim como seu otimismo pelo futuro, dissiparam qualquer sentimento de
alienação e o ajudaram a obter uma compreensão melhor do país. Ele ficou
profundamente comovido com o que ouviu e presenciou. Na história “A comunidade”, ele observa:
“As
mulheres da vila, muitas das quais semianalfabetas, estiveram privadas do
direito de falar por um longo tempo e agora não apenas ‘contavam’ suas
histórias, mas também realizavam performances, articulando suas ideias com
eloquência, como se cada uma fosse uma atriz profissional treinada. As
histórias eram contadas com narrativas vívidas. A variação de tom e ocasionais
explosões de lágrimas reforçavam o efeito, elevando suas performances a um alto
nível emocional. Eram verdadeiras contadoras de histórias. Eu era um pobre
escrevinhador comparado ao dom delas.”
Ainda
que Liao continue um “descrente”, as viagens lhe proporcionaram afinidade com
milhões de cristãos chineses que estão encontrando sentido numa sociedade tumultuada, onde o consumismo
desenfreado está soterrando tradionais e arraigados sistemas de valores. Liao
enxergou paralelos entre a perseverança dos cristãos chineses e sua própria
luta pela liberdade de escrever e viajar. Em setembro de 2010, quando o governo
chinês finalmente concedeu a Liao uma permissão para apresentar suas obras
literárias e realizar suas apresentações musicais na Alemanha, após catorze
tentativas nos dez anos anteriores, ele enviou um e-mail a seus amigos:
“Para
obter e preservar sua liberdade e dignidade, não há outro caminho, a não ser
lutar. Vou continuar a escrever e a documentar o sofrimento das pessoas que
vivem no degrau inferior da sociedade, mesmo que o Partido Comunista não esteja
satisfeito com meus textos. Tenho a responsábilidade de ajudar o mundo a
compreender o verdadeio espírito da China, que irá durar mais que o atual
governo totalitário.”
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Você quer saber mais?
YIWU, Liao. Deus é Vermelho:
a história secrea de como o cristianismo sobreviveu e floresceu na China
comunista. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2011.
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