Plínio
Salgado
Publicado
originalmente no Portal A
Quarta Humanidade.
A que misterioso ritmo
obedece esse estranho rumor, a princípio vago e indistinto, já agora nítido e
altissonante, que perpassa pela superfície da terra, dando a volta ao seu
meridiano?
Que sentido profundo traz
essa agitação geral dos povos, a tragédia surda dos espíritos, a angústia dos
oprimidos e o sobressalto dos opressores?
As cidades cresceram para os
céus. Os mares coalharam-se de naves de aço. O homem percorre a amplidão com
asas de águia. A terra multiplicou as suas messes, as indústrias multiplicaram
seus benefícios. Todos os confortos imagináveis se tornaram realidades banais.
Todos os sonhos de beleza e de magnificência foram ultrapassados. E nunca o
homem dominou mais os elementos, nunca imperou melhor sobre a natureza.
Rufam no espaço os motores;
gritam as locomotivas; berram os automóveis; uivam os apitos das fábricas;
estrondam as usinas; mugem os navios; sibilam polés; estridulam guindastes;
cantam os rádios... É a sinfonia planetária...
O
esplendor do homem
Todas as ambicionadas
farturas a que a Antiguidade poderia ter aspirado centuplicaram-se de uma
maneira assombrosa.
Os celeiros do velho Faraó,
refertos para socorrer as populações da África e da Ásia, durante os sete anos
de penúria, são ridículos em face dos "stocks" internacionais de
trigo, de vinho, de café, de todas as mercadorias, capazes de abastecer duas
vezes a Terra.
Acima desenho de H. Celi, em preto e braco, de 1935 (Fonte Arquivo Público do Paraná - PR).
O ouro de todos os impérios
antigos não se compara ao ouro que a Civilização carregou para as arcas dos
Bancos, dos recessos da América Meridional, das entranhas do Alasca e dos
Estados Unidos, do subsolo da Ásia e da África.
A força dos animais e dos
escravos, que arrastava colunas monolíticas e impelia no mar os quinhentos
remos das galeras romanas, é hoje uma minúscula energia de formigas, comparada
à potência das locomotivas e dos transatlânticos, dos dínamos propulsores das
usinas.
A rapidez de raio das
quadrigas do corso, não passa de um lerdo movimento de caranguejos, em
proporção à velocidade da canção do Broadway, que se escuta no mesmo instante,
no orbe inteiro, ou da luz com que Marconi ilumina do seu iate, em Gênova, a
cidade antípoda de Sidnei, na Austrália.
As máquinas produzem por
milhares de homens. A Civilização esplende nas suas grandes Metrópoles. Nunca a
humanidade foi tão rica, nunca o gênero humano conheceu maior fartura.
A própria terra,
rejuvenescida pelos adubos químicos, revolvida pelos tratores ágeis, plantada
com a nova e milagrosa técnica, decuplica o volume das suas safras, mãe
carinhosa dos homens, transformada em escrava de sua indústria.
O
boneco de carne
E, entretanto, nunca houve
desespero maior, nunca o ser humano mergulhou em confusão tão grande, tão
desnorteadora.
Nas grandes babilônias
cresce a legião dos desocupados; os vagabundos disputam um pedaço de pão; há
criaturas sem teto, que dormem ao relento, ou na promiscuidade dos albergues; e
o próprio trabalho já não é um prazer, mas um triste manobrar de manivelas e de
alavancas, onde toda a iniciativa do espírito desapareceu.
Outrora, o trabalho tinha
qualquer cousa de fino, de sutil, feito de amor e de entusiasmo, de esperança e
de alegria íntima, criadora; e, agora, o homem sente-se, cada vez mais,
submetido a um ritmo mecânico, que o vai transformando, dia a dia, numa peça do
grande maquinismo da Produção.
Não amando mais o trabalho
(e só se ama aquilo onde se realiza a fusão do espírito com as necessidades da
matéria); vendo a "arte" ser substituída pela "técnica"; a
feição individual anulada pela feição estandardizada; a tendência das vocações
contrariada pelas possibilidades das colocações, — o homem moderno vai se
tornando um autômato, um boneco de carne e osso, que será possivelmente
substituído por um outro boneco de aço e ferro, quando o barateamento do custo
da produção e a racionalização do trabalho, levada aos extremos que a técnica
sugere, determinar que assim seja.
O
animal do “oitavo dia”
A máquina moderna, criação
do homem, para produzir confortos ao homem, torna-se uma concorrente deste.
Vede um tear, uma linotipo,
uma rotativa, um motor, um calculador mecânico. Que estranhos seres! Parece que
pensam, que raciocinam, que respondem numa linguagem que não é de palavras, mas
de ação.
A máquina é um ente que tem,
sobre o homem, a vantagem de não fazer greves, de não ter coração para amar nem
boca para falar. E em se tratando de mercadorias similares (e tão similares que
a Economia Clássica os submete às mesmas leis da oferta e da procura), é sempre
preferível a que importunar menos e produzir mais, melhor e mais barato.
Nestas condições, o monstro
de aço conquistou, mais do que a igualdade, a superioridade social sobre o
homem.
A máquina não tem pais nem
gera filhos; não vibra de afetos; não alimenta aspirações; não cultiva
preconceitos. É, portanto, muito mais conveniente ao capitalismo universal.
E é por isso que esse
capitalismo quer arrancar do homem os últimos resíduos espirituais, para que a
massa proletária se transforme também num sistema de maquinismo...
O monstro de aço! Quando ele
trabalha, suas rodas dentadas, suas engrenagens, suas serras parecem rir da
criatura de Deus. E os apitos das fábricas parecem um grito dominador dizendo
ao homem, quando rompe a aurora: "Levanta-te, peça de máquina!”.
Esse grito domina o panorama
das cidades tentaculares, onde o homem sofre, esmagado pela própria civilização
que ele criou.
Humanidade
mecânica
O instinto da máquina vai
avassalando tudo.
As casas mesmo começam a
mecanização do homem, na forma rudimentar do “cortiço”, para depois se fixarem
em expressões mais técnicas das vilas proletárias e dos arranha-céus de
apartamentos.
É olhar uma casa e ver
todas. Submetidas à mesma planta, à mesma fisionomia, elas impõem a cada ser
humano um ritmo idêntico de movimentos, anulando a personalidade, para que
triunfe a coletividade. Pois é sobre a coletividade que a máquina domina mais
soberanamente. E ela exige que se modelem coletividades de formas geométricas
precisas e cadências uniformes.
Essas coletividades devem
ser estereotipadas à fome. Devem cristalizar-se nos fornos de todas as
necessidades, de todas as angústias, que irão obrigando cada tipo isolado a se
acomoda ao grande ritmo dos tipos comuns, cuja finalidade é o próprio ritmo,
cujo sentido é a mecanização total da existência.
A redução ao inanimado. A racionalização
desracionalizante. O homem-tipo, como a máquina-tipo. O trabalho mercadoria,
como o quilowatt-hora. O índice de calorias dos combustíveis. O trabalho como
finalidade do trabalho. A morte total do espírito.
A
besta do Apocalipse
Todo esse inferno
contemporâneo é presidido pela soma do trabalho acumulado pelos latrocínios, na
tradução metálica das barras de ouro e na versão social do papel moeda,
concentrados nas mãos de poucos. É o capital.
Tudo gira em tomo desse
ídolo muito mais terrível do que o Moloch de Cartago, que exigia menor número
de vítimas para as suas entranhas de fogo.
∑
Por
que sofre tanto a humanidade?
É o Capital, que marcha para
a sua feição mais simples; que ensaia a sua tirania na forma dos grandes
trustes, dos monopólios, dos grupos financeiros, das organizações bancárias, e
que se dirige para o capitalismo do Estado, numa velocidade cada vez maior e
mais enervadora.
É
a besta apocalíptica.
Que se assenhoreou do poder
dos reis e dos impérios; que proclamou sua tirania sobre todas as nações, sobre
todos os grupos sociais e sobre todos os homens.
É o espirito da mentira e da
crueldade. O dragão que devora os povos.
Ele ergueu-se, na face da
terra, para enfrentar e negar Deus, como negou pela vez primeira quando rolou
para as trevas eternas; que se levantou para esmagar o Homem, arrastando-o a
todas as abjeções, para finalmente
arrancar-lhe o coração e deixar-lhe, apenas, os movimentos mecânicos da
máquina.
Condenados
e oprimidos
Cresce, por todo o Universo,
o estranho rumor.
É o clamor do Homem que
sofre, nas colônias remotas da Ásia e da África; na estepe da Sibéria, nos
Urais e no Cáucaso, tangido por algozes; nas entranhas do Ruhr, de Cardiff,
negro de hulha; nas profundezas das minas de diamantes do Transvaal, das
cavernas de ouro do Morro Velho, da Califórnia; nos sertões do Brasil, nas
salitreiras do Chile, nas galés das Guianas, nos bairros proletários das grandes
metrópoles resplandecentes como Babilônias multiplicadas, por toda a superfície
do planeta, e nos porões dos transatlânticos e das naves de guerra, armadas
para os morticínios...
É o gemido do Homem, que já
não tem trabalho porque a máquina o expulsou das fábricas; que não tem pão,
porque, na fartura imensa, já não há necessidade do esforço do pária, e as leis
vigorantes determinam que se tome a mercadoria-trabalho quando se precise, e se
deixe morrer o trabalhador, quando não se necessitar dele.
O
útero metálico da máquina
O Homem, vencido pela
máquina, pensa, então, em criar o regime político que agrade à máquina. Pensa
em viver em razão da máquina.
De há muito que a Democracia
renegou os governos éticos, concebendo o Poder como uma expressão do
"Homem Cívico", portanto, do Homem mutilado, do Homem sem alma. De há
muito que se desprezou a teocracia.
Mas o Homem hoje volta-se
para uma forma imprevista de teocracia. Quer ser governado pelos Sumos
Sacerdotes do Ateísmo. Aceita a grande razão da técnica e do capital. Aceita
desaparecer como gota de água no oceano do coletivismo, onde toda a
personalidade se destrói.
É a mais moderna expressão
mística.
O misticismo que nega uma
face da metafísica, para proclamar o valor da outra face.
E que subordina o Homem a
uma divindade infernal, que não se funda no amor, mas na ausência do amor. E
nega ao Homem o direito de se interessar pelas outras criaturas, pois só deve
cogitar de si.
De si, não como
personalidade irradiante, e sim como fração de um grande Todo.
O Homem renega o amor, para
aceitar o egoísmo.
O amor impunha-lhe deveres;
o egoísmo subordina-o à escravidão dos instintos.
A vida do instinto é o
primeiro passo para a transformação do ser humano em máquina.
Essa transformação é
dolorosa, porque o espírito reage.
O Homem inventou a máquina.
A máquina, agora, quer fabricar homens. E se um dia saírem homens das usinas,
também os úteros das mulheres gerarão homens-máquinas, sem coração, sem afeto,
meros aparelhos de produção...
Infinita é a angústia do
espírito. Por todo o planeta perpassa um misterioso rumor... Que estranhas
vozes falam no rumor da procela?
E no rumor da procela há
vozes, há algumas vozes que falam...
Só as escutam os que
conservam a consciência da grandeza humana. Só as entendem os que trazem
consigo a fortaleza do Espírito Perene e a permanência das secretas energias
indestrutíveis...
(SALGADO,
Plínio. O Soffrimento Universal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. Transcrito
das páginas 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24).
Obs.:
Este Artigo foi reproduzido nas antologias “Madrugada do Espírito” e “O
Pensamento Revolucionário de Plínio Salgado” sob o sugestivo título de “O Mundo
que prepara a catástrofe”.
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