Em 863, quando os
missionários Cirilo e Metódio chegaram à Grande Morávia, a terra ainda estava
crivada de flechas e esqueletos. Tinham sido convidados pelo príncipe
Rastislav, um eslavo que havia sido posto no trono pelos francos, herdeiros do
império de Carlos Magno, e se recusava a cumprir seu papel de marionete. Cinco
anos antes, após décadas de combates sangrentos, pilhagens, traições e alianças
instáveis, o príncipe havia conseguido um reino só para si, que englobava o
território das atuais Repúblicas Checa e Eslováquia. Ele queria que os missionários,
que eram irmãos, traduzissem a Bíblia para o eslavo. Cirilo e Metódio
perceberam que não tinham instrumentos para a tarefa, pois alguns fonemas não
se adequavam às letras ocidentais. Assim, decidiram que precisavam de um
alfabeto próprio, que não usasse nem letras gregas nem latinas. Quando deram
início à tarefa monumental, não tinham a menor ideia de que se tratava do
primeiro passo para criar uma forma diferente de expressão - que acabaria
dividindo a Europa para sempre.
Língua
bárbara
São Cirilo e seu irmão
criaram o glagolítico (do antigo eslavo glagol, "palavra"), com 41
letras e cujo A, simbolicamente, é uma cruz. O príncipe Rastislav queria ser
cristão, mas dispensava a tutela dos francos, e o trabalho dos irmãos
missionários era uma maneira de se aliar ao Império Bizantino. Constantinopla
era a cidade rival que nunca aceitou completamente a primazia do papado em
Roma. Pregar em língua bárbara e, pior ainda, usando um alfabeto
incompreensível irritou os francos - que competiam com os ortodoxos pela
conversão dos eslavos.
Os irmãos foram chamados a
Roma para se explicar e ganharam as bênçãos do papa Adriano II para pregar aos
eslavos em sua própria língua. Cirilo adoeceu e morreu em Roma, em 869,
enquanto seu irmão continuou a missão entre os eslavos. Mas a situação não era
mais a mesma. Rastislav havia sido capturado pelos francos e morreria na
masmorra em 870. Ainda assim, Metódio prosseguiu desimpedido até o ano de sua
morte, 885, quando ascendeu um novo papa, Estevão V, um italiano que assumiu o
trono sem esperar a confirmação do imperador dos francos, Carlos III.
Numa manobra para se
proteger, o papa cedeu à pressão dos francos e proibiu as missas em língua
eslava e o uso do novo alfabeto, mas os padres continuaram trabalhando e
criaram uma versão com formas mais familiares aos leitores de grego ou latim.
Era o cirílico, batizado em homenagem ao santo que nunca escreveu uma única
linha nele - e que acabaria substituindo o glagolítico.
O cirílico teria acabado se
dependesse de Roma. Mas os fiéis eslavos se tornaram protegidos do clero
bizantino. Em 1054, o patriarca de Constantinopla foi excomungado por um bispo
enviado pelo papa. Pagou na mesma moeda e excomungou o bispo. Foi o Grande
Cisma do Oriente, que separou para sempre as igrejas Católica Romana e
Ortodoxa. Os eslavos que celebravam a missa em sua própria língua ficaram do
lado dos bizantinos. Assim, surgiria a grande divisão do mundo europeu, espécie
de "cortina de ferro" medieval, refletida em minúsculas diferenças
teológicas, mas um abismo cada vez maior em cultura, alianças políticas,
história militar e arquitetura. Após a expulsão dos discípulos de Cirilo e
Metódio, os eslavos da Morávia se tornaram católicos e passaram a escrever
usando o alfabeto latino, como ainda hoje fazem os checos e eslovacos da
região, assim como os também católicos croatas e poloneses.
Mapa:
Luciana Steckel
Atração
do Ocidente
Cristãos ortodoxos, como
ucranianos, russos, sérvios e bielo-russos, adotaram o cirílico. Mesmo os
romenos, que falam uma língua latina, mas são ortodoxos, escreveriam em
cirílico até o século 19. "Por uma questão de cultura e de religião, não
haveria razões de passar do cirílico para o latino", afirma Aurora
Bernardini, da Universidade de São Paulo (USP).
O cirílico tornou-se um
elemento de identidade nos países ortodoxos. Mas é claro que o resto da Europa
ainda causava fascínio. Quando o czar Pedro I (1672-1725) tentou modernizar a
Rússia, o que, para ele, significava aproximá-la da Europa católica e
protestante, forçou oficiais do governo e do Exército a cortar a barba e usar
roupas ocidentais, chegando até mesmo a estabelecer um insólito imposto sobre
barbas, em 1703, para forçar os cidadãos a aderirem à moda - entre cristãos
ortodoxos, o pelo facial era símbolo de devoção, já que os monges faziam (e
ainda fazem) votos de jamais se tosarem.
Em 1708, o czar aplicou suas
ideias ao alfabeto, introduzindo a "escrita civil", em oposição à
religiosa, tradicional. Pedro chamou tipógrafos da Holanda para uma grande
reforma, que removeu várias letras obsoletas e acentos gráficos, e deu ao
cirílico sua forma atual, com serifas e desenho geométrico, bastante próximo ao
latino. Também foram introduzidas as minúsculas e, algumas décadas depois, a
letra cursiva.
Com pequenas alterações, o
cirílico de Pedro I era usado na Rússia durante a Revolução de 1917. Uma nova
reforma foi imposta em 1918, removendo outras três letras. Mas alguns
bolcheviques tinham planos mais ambiciosos. Um artigo anônimo no jornal Izvestia,
em março de 1919, afirmava: "Devemos adotar o alfabeto latino, que é mais
simples e elegante, da mesma forma que mudamos do calendário russo [juliano]
para o europeu [gregoriano] e adotamos o sistema métrico". O autor,
segundo o historiador romeno Ion Siscanu, era provavelmente Nikolai Bukharin ou
Anatoly Lunacharsky, dois dos maiores ideólogos da revolução bolchevique.
"A questão da latinização não era uma ideia nova na Rússia", afirma
Siscanu. "Os debates sobre a escrita começaram no Império Russo."
Palavras
nacionais
Em 1923, os inguchétios
receberam uma notícia de Moscou. A língua do povo seminômade finalmente
passaria a contar com escrita, no novíssimo "alfabeto de outubro",
que seria imposto também aos vizinhos Azerbaijão, Cazaquistão, Ossétia e Chechênia.
Essa escrita "revolucionária" vinha a ser apenas as velhas e
familiares letras latinas. No começo dos anos 30, 50 das 72 línguas com versão
escrita na União Soviética usavam o latino, e não o cirílico de Moscou. "O
alfabeto latino era um instrumento para estender a revolução socialista a uma
escala mundial", afirma Siscanu. O que os intelectuais soviéticos
acreditavam é que a revolução, se quisesse ser internacional, deveria abandonar
o cirílico. Não apenas as letras os isolavam de seus colegas continentais, mas
o cirílico era também a escrita da Igreja Ortodoxa e do velho Império Russo,
que chegou a tentar impô-lo à Polônia, no século 19.
Mas a revolução bolchevique,
com o tempo, não quis ser internacional. Em oposição a Lenin e Trotski,
Bukharin lançou a doutrina do "socialismo em um só país", que dizia
que a União Soviética não precisava converter o resto do mundo para sobreviver,
ideia abraçada por Josef Stalin. Em 1935, o Comitê Central circulou um
memorando no qual a latinização foi denunciada como contrarrevolucionária,
tentativa de aproximar a União Soviética da Europa capitalista e decadente e um
jeito de sabotar a comunicação entre as repúblicas soviéticas. Inguchétios,
cazaques, ossétios e 47 outros povos tiveram de aprender a ler de novo, desta
vez em cirílico.
A imposição dura ainda hoje.
Em 1999, o Tartaristão, uma república semiautônoma, declarou seus planos para
migrar para o alfabeto latino. A resposta veio na forma de uma lei de 2002,
impondo o cirílico a todas as repúblicas da Comunidade de Estados
Independentes, o sucedâneo da URSS. O presidente Vladimir Putin chegou a
afirmar que a adoção do latino seria equivalente à dissolução da federação.
Hoje, por imposição, orgulho nacional ou mera conveniência, 252 milhões de
pessoas usam o cirílico no dia a dia.
A
letra monstro
Os russos têm razão em amar
seu alfabeto. Afinal, foi feito sob medida para as línguas eslavas. Muitos dos
fonemas que usam dígrafos ou trígrafos no alfabeto latino podem ser escritos
com apenas uma letra em cirílico, como sh (), tch (), ts () ou ia (). O que não
quer dizer que não existam problemas. A grafia do russo não é menos defectiva
que a do português, isto é, as palavras não são sempre pronunciadas tal como
são escritas. Uma letra em particular causava o martírio dos estudantes: o yat
(), que tinha exatamente o mesmo som de ye () - "e" ou
"ie". Os estudantes precisavam decorar longas listas de palavras ou
versinhos sem sentido para saber o que era escrito com yat e o que era com ye,
porque não havia regra. O linguista soviético Lev Upensky chegou a apelidá-la
de "letra monstro". Foi abolida na reforma de 1918.
Texto
Fabio Marton
COPYRIGHT ©
Copyright © construindohistoriahoje.blogspot.com. Você
pode republicar este artigo ou partes dele sem solicitar permissão, contanto
que o conteúdo não seja alterado e seja claramente atribuído a “Construindo
História Hoje”. Qualquer site que publique textos completos
ou grandes partes de artigos de Construindo
História Hoje tem a obrigação adicional de incluir um link
ativo para http:/www.construindohistoriahoje.blogspot.com.br. O link não é exigido para citações. A
republicação de artigos de Construindo História Hoje que são originários de
outras fontes está sujeita às condições dessas fontes e seus atributos de
direitos autorais.
Você quer saber mais?
(COMUNIDADE CHH NO DIHITT)
(COMUNIDADE DE
NOTÍCIAS DIHITT)
(PÁGINA NO TUMBLR)
(REDE SOCIAL ASK)
(REDE SOCIAL VK)
(REDE SOCIAL
STUMBLEUPON)
(REDE
SOCIAL LINKED IN)
(REDE SOCIAL INSTAGRAM)
(ALBUM WEB PICASA)
(REDE
SOCIAL FOURSQUARE)
(ALBUM NO FLICKR)
(CANAL NO YOUTUBE)
(MINI BLOGUE TWITTER)
(REDE SOCIAL BEHANCE)
(REDE SOCIAL PINTEREST)
(REDE SOCIAL MYSPACE)
(BLOGUE WORDPRESS HISTORIADOR NÃO MARXISTA)
(BLOGUE LIVE JOURNAL LEANDRO CLAUDIR)
(BLOGUE BLOGSPOT CONSTRUINDO PENSAMENTOS HOJE)
(BLOGUE WORDPRESS O CONSTRUTOR DA HISTÓRIA)
(BLOGUE BLOGSPOT DESCONSTRUINDO O CAPITALISMO)
(BLOGUE BLOGSPOT DESCONSTRUINDO O COMUNISMO)
(BLOGUE BLOGSPOT DESCONSTRUINDO O NAZISMO)
(BLOGUE WORDPRESS CONSTRUINDO HISTÓRIA HOJE)
(BLOGUE BLOSPOT
CONTATO)
(REDE SOCIAL FACEBOOK CONSTRUINDO
HISTÓRIA HOJE)
(REDE SOCIAL FACEBOOK LEANDRO HISTORIADOR)
(REDE SOCIAL GOOGLE + CONSTRUINDO HISTÓRIA HOJE)
(MARCADOR DICAS DE LEITURA)
(MARCADOR GERAL)
(MARCADOR PESSOAL)
(MARCADOR ARQUEOLOGIA)
(MARCADOR ÁFRICA)
(MARCADOR ANTIGUIDADE)
(MARCADOR PERSONAGENS DA HISTÓRIA)
(MARCADOR HISTÓRIA DO BRASIL)
(MARCADOR FÉ)
(MARCADOR COMUNISMO)
Nenhum comentário:
Postar um comentário