quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Palavras também morrem.

Quase um quarto dos verbos da língua portuguesa do século XIII simplesmente desapareceu dos nossos dicionários atuais


Todo mundo riu quando a filha de um famoso cantor sertanejo, ela também cantora, disse recentemente que, enquanto lia o romance As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis, tinha de ir a cada cinco frases ao dicionário. Mas, sem entrar em discussões mais profundas, temos de admitir: é quase impossível entender todas as palavras dos textos mais antigos escritos em português. A impressão que temos é que os verbos medievais simplesmente sumiram da nossa língua.

Quer um teste? Lá pelos idos de 1214, o nobre D. Lourenço Fernandes da Cunha pôs no papel (ou, melhor, num papiro irregular de 15 por 30 centímetros) os vexames que havia sofrido. O documento, conhecido como Notícia de Torto, é um dos cinco mais antigos textos escritos em português. Em 55 linhas, D. Lourenço reclamava da violência dos filhos de Gonçalo Ramires. Num trecho, o nobre diz o seguinte: “[...] fur(u) a Ueraci amazaruli os om(éé)s”*. Alguém entende?

E olha que isso é português, como o nosso. O período de transição entre o latim e a nova língua já havia passado – foi entre os séculos 9 e 11. Acontece que 23% dos velhos termos desapareceram mesmo do português. Uma comparação entre o Dicionário Houaiss, com 228 mil verbetes, e o Dicionário de Verbos do Português Medieval (DVPM), projeto da Universidade de Lisboa que cataloga as palavras usadas nos primeiros textos da língua, mostra ainda que outros 3% dos verbos são classificados como arcaicos, antigos ou obsoletos. E mais 1% são tidos como de uso raro.

Tirar palavras em desuso do dicionário é comum em diversos idiomas. A Espanha, por exemplo, passou por uma reforma ortográfica severa. Em 1999, diversos verbetes foram excluídos da língua espanhola.


Essas, sim, deveriam sumir; Ego, meliante e poetisa me causam calafrios

Banir palavras – a idéia é tentadora, mas não é saudável. A língua é um ser vivo, e não uma ave empalhada. Move-se, muda, e o que é ruim hoje pode ser excelente amanhã. Mas, não posso negar, o português está infestado de palavras que me causam calafrios. Talvez não seja, contudo, o caso de eliminá-las, até porque o mal de uma palavra nem sempre está no que ela é, mas no que fazemos dela.Que os psicanalistas falem em “ego” na tentativa de delimitar o espaço entre um conceito e uma palavra de uso comum, “eu”, vá lá. Mas que nós falemos em “ego” é coisa bem diferente. Ou será para esconder a vaidade?

Por que dizer “meliante”, como fazem os policiais, e não simplesmente “marginal”? Por que falar no “elemento” e não no “sujeito”? Ainda há quem diga “poetisa”, quando Cecília Meireles é, simplesmente, uma grande poeta.

Poetisa poderia ser, no máximo, a mulher de um poeta – como é a embaixatriz, que se distingue da profissional, embaixadora. Palavras, além do mais, viciam, como o cigarro ou o álcool. Na televisão, em vez de responder à pergunta do repórter com um simples “sim”, quase sempre se prefere o deplorável “com certeza”. Na apresentação da reportagem, os âncoras dos telejornais sugerem que devemos “conferi-la” – como se fôssemos verificar a quantidade de ovos de uma cesta. Seria importante eliminar, ainda, redundâncias como “pequenos detalhes”, incorporadas à linguagem comum.
É verdade que, como um ser vivo, a língua está exposta a transformações. O que está errado hoje, por força do uso, logo estará certo. Sim, ela é o terreno da liberdade. Mas isso não exclui a elegância, nem a sabedoria.


Sem palavras Estes termos usados nos idos de 1200 sumiram ou foram modificados

Assunar: juntar, pôr(-se) junto, unir(-se), reunir(-se)
Amazar: matar, tirar a vida (de alguém) intencionalmente, assassinar

Chuiva: Chuva, fenômeno que resulta da condensação do vapor de água contido na atmosfera em pequenas gotas que, quando atingem peso suficiente, se precipitam sobre o solo muito próximas umas das outras

Encartado: condenado, que ou o que se condenou

Geolho: joelho, articulação da coxa com a perna

Mesurado: moderado, que se moderou, comedido

Osmar: calcular, determinar o valor

Suso: acima, em direção a lugar ou parte superior, ascensionalmente

Trevudar: pagar imposto


Até Camões escrevia errado

Camões, em seu clássico Os Lusíadas, escreveu versos como: “doenças, frechas e trovões ardentes” ou “nas ilhas Maldivas nasce a pranta”. Era assim mesmo, com “r” no lugar de “l”. Tanto flecha como planta são palavras com origem em termos com “l”: flecha vem do francês flèche e planta vem do latim planta, nem mudou.

É, Luís Vaz de Camões e seus contemporâneos sofriam do mesmo “probrema” que ataca muita gente humilde hoje. A confusão se explica: “r” e “l” são consoantes da mesma família, as consoantes líquidas. Trocar uma pela outra é fácil. E, para nós, o encontro consonantal com “r” é mais natural.

O lingüista Marcos Bagno, autor de Preconceito Lingüístico, diz que ao longo do tempo nossa fala deveria ter acabado com os encontros consonantais com “l”. Mas um fato histórico impediu isso. No século 16, um bando de gramáticos – todos com complexo de Cebolinha – tentou reaproximar a língua do velho latim. A flecha que já estava virando frecha voltou a ser flecha. E a frecha de Camões entrou para a lista dos termos que sumiram. Outras palavras, porém, resistiram. Como praga, apesar de ter origem no latim plaga. E grude, que vem do latim gluten.
Por isso, Marcos Bagno defende o respeito a todas as pessoas que hoje falam errado – tão errado quanto Camões falava. E sobre o tão comum problema do “probrema”, acredite: se o próprio Camões nunca errou especificamente essa palavra foi por mera falta de oportunidade. Na verdade, ele nunca a escreveu. Problema só se incorporou ao português em 1683. O escritor morreu 103 anos antes.

Você quer saber mais?

http://historia.abril.com.br/

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