Há um paradoxo vital para o leitor considerar, ao ler o texto que aqui começa: embora seja praticamente a única forma de entrada de alunos nas graduações, o exame vestibular não é um tema relevante dentro da Universidade. Posso referir uma experiência pessoal no caso: tendo trabalhado por mais de 20 anos no nosso concurso vestibular, nas provas de Redação, Literatura e Português, senti na pele essa estranha negligência. Uns anos atrás, por exemplo, quando cada professor ainda preenchia semestralmente uma folha para dar conta de suas atividades docentes nos vários campos de atuação possíveis, simplesmente não havia como consignar o exaustivo e complexo trabalho com a elaboração e a aplicação das provas, salvo em miudíssimas linhas finais em que se anotavam suplementos irrelevantes, que não contavam para nada, muito menos para a progressão funcional. Trabalho de imensa responsabilidade social e científica, o vestibular entre nós (e o comentário pode ser estendido talvez a todas as grandes universidades brasileiras) nunca foi centro de devidas atenções.
É compreensível que professores e pesquisadores superespecializados despendam pouca energia na consideração do problema; mas não é compreensível que o poder central universitário - não me refiro a nenhuma gestão em particular, mas à estrutura - negligencie esse episódio anual que não apenas seleciona os alunos para a graduação, mas que,
mais ainda, influi nos destinos de todo o ensino secundário.
As regras de elaboração das provas são restritas; o universo conceitual e empírico a levar em conta, nas várias disciplinas, é virtualmente infinito; é exigido um sigilo que por sua vez é também um elemento ultrarrestritivo em vários níveis; não se desenvolveu a contento, creio que em nenhuma das áreas de conhecimento, um volume de pesquisa acadêmica capaz de realimentar e sofisticar o processo todo, por falta de política de incentivo orientada pelas instâncias superiores da nossa Universidade; o impacto social é imenso, incalculável, para dentro e para fora do ambiente universitário.
Mas não estou aqui apenas para lamentar; o caso é que, com todas as restrições que se possa imaginar, a Universidade brasileira, a UFRGS em particular, conseguiu manter um padrão elevado de provas no vestibular. De forma geral, as melhores universidades do país, entre as quais a nossa, acumularam uma excelente experiência na elaboração e na aplicação dos exames.
Pois bem: havendo esse patrimônio de altíssima valia, já há algumas décadas, seria de esperar que o Ministério de Educação, quando resolveu avaliar o sistema educacional brasileiro, particularmente o Ensino Médio, o tivesse levado em conta; que o MEC procurasse não apenas prestigiar as universidades que a ele estão subordinadas, o que já seria decente, mas que tentasse não cometer erros já cometidos.
Mas o que se viu foi bem outra coisa. Começando nos governos FHC e prosseguindo nos governos Lula, instalou-se um Exame Nacional que, no que interessa a este debate aqui,
transformou-se não em solução, mas em problema e mesmo em vexame para o sistema educacional como um todo. O atual Exame Nacional do Ensino Médio, ENEM, tem a vocação política de tornar-se o principal (quando não o único) exame vestibular, para o grosso do ensino superior brasileiro; e tendo esse larguíssimo horizonte ele precisa ser pensado e,
no que me diz respeito, seriamente arguido, como tento fazer nos tópicos que seguem. (Uma versão anterior deste texto, menos desenvolvida, foi publicada na Folha de São Paulo.)
1. Confusão entre avaliação e seleção - Criado com a saudável finalidade de avaliar os estudantes e as escolas brasileiras, o ENEM agora passou, sem muita cautela, a ser um instrumento de seleção para ingresso na Universidade. São, deveriam ser, duas atividades muito distintas, que o Brasil lamentavelmente tem misturado desde o começo dos anos 70, quando houve um forte aumento do número de formados no ensino médio demandando as escassas vagas superiores, num processo que constrangeu as universidades a barrar candidatos em massa. Resultou que o vestibular, exame de seleção para ingresso, gerou um rebote e se transformou em critério informal mas efetivo de organização curricular e de avaliação das escolas e dos alunos, num curto-circuito perverso, agora reiterado pelo MEC. Em poucas palavras: o que cair no vestibular vai ser dado na escola, e o que é pior, mesmo naquelas cujos alunos não disputam diretamente as vagas das universidades mais exigentes.
Vale um parêntese: o MEC tem dito que, por seu caráter supostamente inovador - as novas provas teriam como centro não mais a decoreba (coisa que o Ministério pode não saber, mas há muito tempo não são mais o centro de nenhum vestibular de universidade importante) mas sim o raciocínio -, estaria por decretar o fim da era dos cursinhos. Trata-se de uma tolice: enquanto continuar havendo vestibular eliminatório, vai continuar existindo cursinho preparatório.
2. Reforço à supercentralização - Na pior tradição ultracentralista do Estado brasileiro, agora o MEC inventa um exame nacional concentradíssimo. O imbróglio do ENEM pouco tempo atrás foi fruto de maldade e inexperiência, mas mais ainda dessa supercentralização. Além disso, aplicado no país todo, suprimiu temas que chama de “regionais”, o que envolve de revoltas sociais e marcos geográficos a escritores e livros. Segundo qual critério se define o “nacional” ou o “regional”, não está claro, mas eu arrisco dizer: será o critério da atual hegemonia cultural, que é paulistocêntrica. Isso sem contar ainda outro aspecto, virtualmente criminoso: ao instituir um ranking nacional de vagas nas universidades, de que os candidatos teriam conhecimento on-line e em função do qual poderiam mudar sua opção até a undécima hora, o MEC estará na prática criando em escala nacional a mesma elitização social dos vestibulares atuais. Os melhores candidatos, que são do Sudeste e do Sul, vão disputar as vagas em todo o território, e não será nada estranho que, por exemplo, as vagas de Medicina, Brasil afora, sejam quase todas ocupadas por candidatos dessas duas regiões mais ricas. E é claro que, como disse um reitor de Universidade Federal do Centro-Oeste, tais alunos cumprirão a graduação na província, mas não permanecerão trabalhando ali, porque vão tentar a sorte nos centros já consolidados de trabalho e de pós-graduação.
3. Desrespeito pela experiência das Universidades - Que o MEC quisesse inventar um exame nacional com papel de seleção, seria até respeitável, desde que, pelo menos, fosse levada em conta a vasta experiência acumulada nas melhores universidades brasileiras, como dissemos acima. Nem falemos do processo de atribuição de notas para a redação, que é de chorar de tão precário: a “correção” das redações vai ser feita sem a necessária unidade de operação, cada avaliador em sua casa, recebendo uma prova escaneada em Brasília; já pelo seu isolamento, vai ser difícil que possa sanar dúvidas, sempre existentes, e mais ainda possa trabalhar em sintonia fina com o conjunto dos outros avaliadores. Aqui temos outro desagradável desrespeito para com uma larga e competente tradição de todas as boas universidades brasileiras.
4. Autoritarismo - O MEC induziu as universidades a aceitarem o ENEM como vestibular, com uma pequena margem de manobra (margem que foi aproveitada, não por acaso, pelas mais competentes universidades, entre elas a UFRGS, ainda bem, que enquanto não forem constrangidas economicamente vão resistir a ele, espero). O prazo desse processo, considerando a correta e necessária lentidão que uma universidade precisa manter em questões dessa magnitude, foi estreitíssimo. E a mudança foi divulgada, como se viu em Porto Alegre, com ares de verdade revelada: quadros do Ministério vieram à boca da cena com aquele sorriso desdenhoso de quem tem pouca leitura e muito poder, para regozijar-se com a
suposta modernização que anunciavam. Durante a ditadura, também se viu isso: a toque de caixa, sem debate público e embalado por um discurso modernizador, o governo federal impôs aquela mixórdia legal que alterou para pior o ensino fundamental e o médio. Um paralelo assustador: naquela época, o MEC quis abolir o ensino de Português e Literatura, obrigando à medonha “Comunicação e Expressão”; agora, nomeia a prova que trata dos mesmos conteúdos com outro horror, “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”. Autoritarismo pouco culto de quem presume estar reinventando o mundo, aliado à redação inepta, em mais um assalto na luta da pedagogia inespecífica contra os “conteúdos” que ela tanto despreza – e ai de quem tenha estudado e valorize algum deles.
5. Desprezo pela História da Literatura - O modo de elaborar a prova, na tal área de Linguagens, Códigos e, argh, suas Tecnologias, jogou no lixo a grande tradição de ensino de história da literatura. Há defeitos nela? Por certo que sim, e está aqui um dos tantos críticos dos modelos atuais; mas provavelmente serão proporcionais aos de qualquer outra área. O certo é que o ENEM trata o texto literário como apenas um texto entre outros: um poema de Drummond no mesmo patamar que um anúncio de remédio e um cartaz contra o cigarro, sem qualquer contexto. As aulas de História da Literatura costumam ser a melhor (quando não a única) porta de entrada oferecida pela escola ao mundo da cultura letrada; abolida do programa do ENEM a demanda por essa dimensão, e na assustadora hipótese de o exame vir a ser o vestibular universal para o terceiro grau no país, o que ocorrerá? A morte por asfixia da história da literatura parece quase inevitável, e com ela a citada porta de entrada. Isso num
governo de esquerda, que costuma alegar gosto pela história.
Você quer saber mais?http://www.ufrgs.br/comunicacaosocial/jornaldauniversidade/