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primeira civilização da Índia e uma das
maiores da Antiguidade, foi tão desenvolvida quanto o Egito e a Mesopotâmia.
Mas sua história está apenas começando a ser desvendada.
O
vaivém de peregrinos é intenso, frenético, louco. Eles chegam aos montes,
vindos de pequenos vilarejos vizinhos, nos vales ao leste do Paquistão. As
ruas, tomadas por mercadores itinerantes, ganham, aos poucos, o colorido dos
artistas performáticos e das trupes de circo. Músicos ajudam a entreter as
multidões. Luzes e sons misturam-se. Mulheres gazeteando pelas vias procuram
peregrinos mais experientes, para dar a eles as oferendas religiosas que serão
repassadas a divindades de lugares distantes – tudo para garantir que, no
futuro, seus filhos sejam saudáveis e – preferencialmente – do sexo masculino.
À primeira vista, este é apenas mais um tradicional ritual de cultura popular,
desses que o tempo insiste em manter vivos.
E
é mesmo. Conhecido por sang – algo como “feira de encontro” –, é realizado até
hoje nas grandes cidades do vale do rio Indo, perto da fronteira entre o
Paquistão e a Índia. Mas esconde uma curiosidade. Remete a uma das civilizações
mais desenvolvidas de toda a Antigüidade, um povo que viveu ali, na mesma
região, há milhares de anos. Não eram egípcios, nem mesopotâmios, tampouco
chineses. Esse povo esquecido atingiu um surpreendente grau de desenvolvimento,
comparável inclusive ao dos célebres vizinhos. A diferença é que não ficaram
tão conhecidos – pelo menos nos dias de hoje –, embora tenham interagido
profundamente com algumas dessas culturas avançadas. Eles eram a civilização do
Vale do Indo, ou civilização harappiana, nome derivado de sua principal cidade,
a capital Harappa.
Por
volta de 3000 a.C., numa época em que Egito, Mesopotâmia e China começavam a
esbanjar desenvolvimento e a ocupar o centro do mundo, os harapiannos
floresciam no vale do rio Indo. Como as potências vizinhas, também dominavam
técnicas e conhecimentos inimagináveis para aquele período da história. No seu
auge, entre 2600 a.C. e 1900 a.C., espalharam-se por mais de 1500 vilas e
estenderam-se por uma área duas vezes maior que o próprio Egito antigo e a
Mesopotâmia. Ergueram cidades amplas e muito bem planejadas, com sistemas de
drenagem sofisticados e prédios muitos complexos, e já conheciam as técnicas de
fundição a mais de 930°C. Eram artesãos habilidosos que se destacavam
principalmente por seus trabalhos com cerâmica e argila.
O
conhecimento traçou os rumos de Harappa. Seus habitantes abriram rotas
comerciais que os levaram ao Golfo Pérsico, à Ásia Central e à Mesopotâmia. Por
outro lado, as cidades harappianas viraram centros de comércio do mundo antigo.
O artesanato local espalhou-se, tendo sido encontrado até nos sítios
arqueológicos mesopotâmios. Textos antigos desta civilização, as inscrições
cuneiformes, também comprovam o contato entre as duas culturas. Falam sobre o
comércio com povos originários da distante Índia, que costumavam chamar de
Meluha e Makkan. Assim como ainda acontece atualmente, naquela época os
moradores dos pequenos vilarejos harappianos iam para as grandes cidades em
dias de festivais – ou feiras de encontro, para comprar, vender ou trocar
produtos, participar de cerimônias e até para rever familiares.
Democracia e Religião
Apesar
de ser a maior das quatro civilizações da Antigüidade, o Vale do Indo só foi
descoberto em 1920, quando arqueólogos escavaram parte das ruínas de Harappa e
Mohenjo-daro, as duas maiores cidades da região, áreas que hoje correspondem às
províncias paquistanesas de Punjab e Sindh, respectivamente. Mesmo assim, ainda
há muito a ser escavado e, principalmente, desvendado. Questões básicas sobre
estes povos continuam sem respostas. Vários sítios arqueológicos permanecem intocados,
incluindo grandes cidades, e sua escrita está longe de ser decifrada. Alguns
pontos, porém, são dados como certos.
A
semelhança entre as plantas e a arquitetura das cidades harappianas, por
exemplo, mostram que o Vale do Indo mantinha uma estrutura social e econômica
uniforme. A economia era baseada na produção agrícola e nas atividades
comerciais. Ou seja, comerciantes e artífices tinham grande influência na
sociedade e, muito provavelmente, compunham a elite dominante. O povo era
pacífico e não apresentava uma cultura belicosa, embora possuísse armas como
lanças e espadas. Não havia reis nem teocratas – prova disso é a inexistência
de palácios e templos suntuosos, mesmo nas ruínas das grandes cidades. As
maiores construções eram mercados e prédios de banhos públicos, algo tão
sofisticado para época que nem mesmo no Império Romano, dois mil anos depois,
este tipo de facilidade chegava às classes mais baixas. “As principais
edificações não são voltadas para os líderes, mas sim para a população. Isso
sugere, inclusive, que havia um possível exercício arcaico de democracia,
baseado principalmente em valores econômicos”, comenta o professor de cultura
da Índia e língua sânscrita Carlos Eduardo Barbosa, do Instituto Narayana, de
São Paulo.
Essa
organização social não exclui, no entanto, a participação e a influência de
líderes religiosos na sociedade. É provável que eles tenham sido a chave para
manter unida uma civilização tão abrangente, que não tinha como característica
usar a força para subjugar outros povos. Apesar de não haver provas
arqueológicas da existência destes líderes, existem estudos que indicam que
eles formavam uma elite dominante, que manteve a hegemonia por meio da religião
e de rituais sagrados. “É o que aconteceu mais tarde com o hinduísmo, em que
milhões de pessoas permaneceram unidas não pelo uso da força, mas sim da
persuasão”, pondera Iravatham Mahadevan, do Conselho de Pesquisa Histórica da
Índia, que há mais de 30 anos estuda a escrita do Vale do Indo. “Além disso,
existem selos encontrados nos sítios arqueológicos que mostram a prática de
rituais sagrados, com adorações a deuses nus, sentados em posição de yoga”,
acrescenta Mahadevan.
Apogeu e decadência
Embora
não se saiba muito da cultura do povo harappiano, sabe-se que a cidade de
Harappa viveu seu boom econômico entre os séculos 2800 a.C. e 2600 a.C. Foi
nesse período que os artesãos desenvolveram técnicas avançadas de manipulação
de argila e outras matérias-primas, criando tijolos simétricos de barro e
objetos refinados de cerâmica cobertos por uma espécie de esmalte. A fabricação
de produtos têxteis também decolou aí. Enquanto os egípcios notabilizavam-se
pela manufatura de peças de linho, os harappianos teciam com algodão. Surgiu
nessa época ainda o sistema formal de escrita local, estampada em vários vasos
e selos de argila encontrados nos sítios arqueológicos. Estes objetos,
ilustrados com figuras geométricas ou representações de animais, parecem ter
tido uso comercial ou administrativo. Seriam usados basicamente pela elite dominante
e funcionavam como um mecanismo de controle econômico e demonstração de poder
político.
Alguns
pesquisadores, como Mahadevan, acreditam que eles também indicavam os títulos
de seus usuários e até nomes e profissões. Para os harappianos, seria algo útil
numa cidade que chegou a ter cerca de 80 mil habitantes, segundo as estimativas
do arqueólogo Jonathan Mark Kenoyer, professor de antropologia da Universidade
de Wisconsin e um dos líderes dos grupos de escavações dos sítios
arqueológicos. Esses e outros segredos de Harappa, no entanto, continuam
escondidos atrás de um enigma: a indecifrável escrita do Vale do Indo.
Depois
de quase dois mil anos de existência, a civilização do Vale do Indo começou a
entrar em declínio. Várias teorias explicam esta fase, mas nenhuma é unânime. A
mais aceita combina uma série de motivos. O primeiro deles seria a incapacidade
da elite em manter a ordem num território tão vasto e povoado, que por volta de
1900 a.C. já se estendia para além das planícies do rio Ganges. “Essa falta de
autoridade levou a uma reorganização da sociedade, não apenas em Harappa mas em
toda a região do Vale do Indo”, escreveu Kenoyer em artigo publicado na revista
Scientific American. Prova disso é o desaparecimento gradual de símbolos
característicos da região, como os selos, vasos e pesos usados na taxação e
comércio de produtos.
Outro
fator importante para a queda da civilização harappiana foram as alterações
climáticas que ocorreram ao longo dos séculos, possivelmente causadas pelo
crescente desflorestamento para obtenção de matérias-primas. Em 2000 a.C., um
dos mais importantes rios da região, o Sarasvati, começou a secar e deixou
várias cidades sem uma base viável de subsistência. Estas populações teriam
migrado para áreas agrícolas e cidades como Harappa e Mohenjo-daro,
superpovoando lugares que não tinham estrutura para receber mais pessoas. Por
conseqüência, os mecanismos de manutenção das rotas comerciais acabaram
comprometidos.
Uma
das teorias mais antigas, porém, conta outra história. Teria havido uma simples
dispersão da população para outras regiões. Mas esta é uma hipótese pouco
considerada pelos estudiosos atualmente. “Vestígios arqueológicos encontrados
em escavações recentes mostram que as cidades continuavam habitadas entre 1900 a.C.
e 1300 a.C.”, escreveu Kenoyer. Uma terceira tese atesta ainda que os
harappianos foram aniquilados pelos indo-arianos a partir do segundo milênio
antes de Cristo. De fato, o período entre o ano 2000 a.C e o ano 1300 a.C. foi
bastante conturbado, com guerras eclodindo em várias partes do mundo. Além
disso, existem indícios de batalhas nos sítios arqueológicos do Vale do Indo.
Mesmo
assim, é pouco provável que os indo-europeus tenham destruído toda a
civilização. A maioria dos especialistas acredita que a imigração ariana
aconteceu depois que os harappianos entraram em declínio – e a relação entre
estes povos foi muito provavelmente pacífica. “Quando chegaram à região, os
indo-europeus tornaram-se sedentários e seus rebanhos ajudaram a fertilizar os
campos agrícolas. Em troca, seus cavalos alimentavam-se da palha da cevada que
era produzida pelos agricultores”, argumenta Barbosa. E por fim há uma hipótese
indiana ultra-nacionalista, que acredita no caminho inverso ao ensinado pelo
etnocentrismo europeu. Ela defende a idéia de que a civilização do Vale do Indo
deu origem aos védicos, povos que surgiram logo em seguida aos harappianos e
formularam o Rig Veda, a mais antiga escritura sagrada hindu. De acordo com a
tese, eles conquistaram os sumérios e teriam expandido seus domínios para o
oeste, influenciando também os povos do Ocidente. Ufanismo? Pode ser. Mas esta
também é mais uma pergunta que continua sem resposta.
Altos e baixos no Vale do Indo
Os harappianos deixaram uma herança para a
Índia
3300 a.C. – 2800 a.C.
É
a primeira fase da civilização harappiana, chamada de Ravi. No começo deste
período, plantam trigo, cevada e leguminosas. Técnicas especializadas de
artesanato avançam pelo vale do rio Indo e as primeiras rotas comerciais
começam a se desenvolver, com pequenos vilarejos formando-se ao seu redor. Na
mesma época, sumérios construíam os primeiros zigurates e egípcios enterravam
seus mortos junto com suas riquezas em túmulos de tijolos de barro.
2800 a.C. – 2600 a.C.
Período
conhecido como Kot Diji. Harappa torna-se um próspero centro econômico, dando
início à urbanização. Artesãos aprimoram suas técnicas e produzem peças
refinadas de cerâmica esmaltada, trabalhando com fornos em altas temperaturas.
Aumenta a quantidade de matérias-primas que chegam à cidade, em carroças e
barcos. Rodas feitas de terracota surgem neste período.
2600 a.C. – 1900 a.C.
É
o apogeu da civilização do Vale do Indo, com mais de 1.500 vilas espalhadas por
uma área muito maior do que a de todas as antigas civilizações juntas, com
exceção da China. As rotas comerciais chegam até o Golfo Pérsico, à Ásia
Central e à Mesopotâmia. Cidades amplas e bem planejadas multiplicam-se, com
sistemas de drenagem e prédios sofisticados.
1900. a.C. – 1300 a.C.
Uma
série de fatores ocasiona a queda de Harappa. Entre os motivos estão até
variações climáticas, que provocaram a seca do rio Sarasvati. Há indícios de
batalhas nos restos arqueológicos, mas pesquisadores não acreditam que a
civilização tenha sido aniquilada por outros povos. A cultura em torno do
Ganges assume a hegemonia.
1300 a.C. – 1000 a.C.
Uma
nova ordem social entra em vigor. Seguidores da religião védica, que falam
línguas indo-arianas, como o sânscrito, povoam o subcontinente indiano. O
urbanismo e a arte harappiana, no entanto, sobrevivem. Artesanatos continuam
sendo produzidos na regiãodo Vale do Indo, embora adaptados a novas exigências.
Surgem garrafas e contasde vidro. Mais tarde, desenvolvem, paralelamente ao
Ocidente, o aço.
A
sociedade das castas
Com
o fim de Harappa, a Índia foi retalhada. Surgiu em cena o modelo que bagunça a
estrutura social do país até hoje.
A
divisão da sociedade indiana em castas surgiu da turbulência social e das
invasões do subcontinente, logo após o declínio de Harappa. Foram criadas pelos
védicos (hindus), na tentativa de instaurar a ordem e acalmar os ânimos das
diferentes lideranças. A idéia era instituir territórios culturais das
linhagens familiares. No início, quatro castas foram estabelecidas a partir da
observação das aptidões naturais de cada grupo: brâhmanes, a classe dos sábios,
sacerdotes e professores, incumbidos da orientação espiritual e aconselhamento
dos governantes; kshatrias, a casta guerreira, encarregada de manter a ordem
política e garantir a proteção social; vayshias, composta por comerciantes,
artesãos e grandes proprietários de terras, responsáveis pela economia da
sociedade; e shudras,ou trabalhadores braçais,que deveriam seguir os desígnios
das outras três classes. De acordo com a teoria da invasão indo-ariana, esta
era a casta dos harappianos, depois que foram assimilados pelos védicos. Com o
passar dos anos, as castas multiplicaram-se e, hoje, estima-se que haja mais de
2000. Surgiram, por exemplo, os párias, cujo grau mais baixo é o dos chantalas
– ou intocáveis, pessoas sem função social, como mendigos e andarilhos. O
sistema das castas durou com relativa organização até o século 17, quando foram
declaradas hereditárias. Até então, havia alguma mobilidade e pessoas de uma
determinada classe poderiam ascender socialmente. Com a nova medida, a bagunça
foi geral. Chegou a tal ponto que, no século 19, o guru hindu Sri Ramakrishna
declarou o fim das estratificações. Oficialmente, porém, a estranha divisão da
sociedade perdurou até 1960, quando as castas foram finalmente banidas por lei.
Mas, na prática, a história é diferente. Até hoje elas são mantidas vivas pelo
preconceito e por iniciativas do próprio governo indiano, que cria empregos,
por exemplo, apenas para castas menos privilegiadas.
Que língua é essa?
Como
ninguém consegue decifrar o harappiano, a civilização do Vale do Indo permanece
envolta em mistérios que estão longe de serem desvendados.
O povo
de Harappa deixou ruínas de grandes cidades como herança arqueológica, mas a
única forma de escrita encontrada pelos pesquisadores são as pictografias dos
selos e outros ornamentos artesanais. Decifrá-las segue sendo o desafio de
estudiosos mundo afora. Primeiro, porque não existe – ou, pelo menos, não foi
descoberta – uma Pedra de Roseta que contenha inscrições em duas línguas para
ajudá-los a quebrar o código. Além disso, a variação de sinais dos milhares de
selos achados pelos arqueólogos é muito pequena – há uma média de cinco por
objeto, apenas, repetidos em outras peças. "Tudo indica que a disposição é
totalmente aleatória. Se alguém encontrar uma placa de automóvel daqui a
milhares de anos, por exemplo, dificilmente vai dizer que se trata de uma forma
de escrita", compara o professor Carlos Eduardo Barbosa.
É
certo que estes sinais foram amplamente difundidos na maioria das cidades da
civilização harappiana, por causa da unidade cultural e das necessidades
econômicas desses povos. A maior parte dos selos reproduz, também, figuras de
animais e objetos usados em rituais. A imagem de unicórnios é a mais comum
(aparece em 65% das peças), mas há desenhos de elefantes, búfalos, tigres,
rinocerontes e outros animais.
Uma
possibilidade sustentada por pesquisadores é a de a escrita harappiana ser a
forma arcaica de alguma língua dos dravidianos, que habitaram o norte e
noroeste do subcontinente. Como o balúchi por exemplo, que ainda é falado no
Baluchistão e em algumas partes do Irã. "Mas isso é apenas uma teoria. A
única coisa que podemos dizer é que são sinais escritos da direita para a
esquerda, assim como o árabe e ao contrário do sânscrito", avalia o
estudioso indiano, Iravatham Mahadevan. Mas ele ainda tem esperança de
encontrar a chave da antiga civilização. "Sempre existe a possibilidade de
se descobrir algo novo, um objeto ou mesmo uma tábua de argila bilíngue, em
lugares como o Oriente Próximo. Os harappianos fundaram espécies de colônias
por lá e é bem capaz de terem fabricado objetos com traduções na língua
local".
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(HARAPPA)